Em performance de 12 horas, americana aborda relação entre tempo e mar na Gamboa

Resultado será exibido em vídeo em galerias de arte pelo mundo

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  • Tailane Muniz

Publicado em 2 de abril de 2019 às 16:55

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

As águas tranquilas do mar do Solar do Unhão, na Avenida Contorno, inspiram arte. A calmaria da praia, às margens da comunidade da Gamboa, em Salvador, e o ciclo entre a alta e a baixa da maré, talvez, nunca tenham sido testemunhados tão de perto, como nesta terça-feira (2), quando a artista visual norte-americana Sarah Cameron Sunde tenta permanecer dentro da água por 12 horas.

Pode até soar loucura passar tanto tempo dentro do mar, imóvel, em pé, sem qualquer alimento sólido, e alheia às condições climáticas - e mistérios das águas -, mas a equipe explicou que, para a artista, a intervenção surgiu da necessidade de chamar a atenção das pessoas para a relação dos seres humanos com o tempo e a natureza.

O ciclo de 12 horas, completos pela primeira vez na América do Sul, corresponde exatamente ao tempo entre a baixa e alta da maré. Batizada de 36.5 - A Durational Performance with the Sea, ou, em tradução, uma performance de longa duração com o mar, a intervenção da americana teve início às 8h29, na maré rasa com a artista parcialmente imersa. Quem acompanhava no local atestou ao CORREIO que ela saiu do mar às 20h45 exausta e com o rosto vermelho, mas bem. Coletivo Pretxs de Rua, de Salvador, participa de intervenção com americana (Foto: Marina Silva/CORREIO) Sarah, que tem 41 anos e não tem filhos, conheceu Salvador em fevereiro deste ano, mas nunca tinha estado naquelas águas. Sobre a Gamboa, recebeu algumas referências de pesquisadores locais, que reportaram a ela sobre os moradores, frequentadores e os hábitos dos assíduos da prainha, localizada ao lado do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM).

A americana realizou o primeiro ciclo de 12 horas aos 36 anos - daí a referência do número -, no litoral do estado do Maine, nos Estados Unidos. No mar da Bahia, Sarah repetiu o ato vestindo calça preta e uma blusa vermelha com proteção UV, utilizadas também em outras quatro imersões: em São Francisco (EUA), Holanda, México e Bangladesh.

‘O mergulho’ Entre o vai e vem das ondas aparentemente pacíficas, sob o sol forte, a artista permaneceu segura a uma corda presa às pedras. A intenção era ficar o mais estática possível, já que toda intervenção foi filmada por mais de um ângulo e vai resultar na produção de um vídeo em time-lapse, uma série de fotografias que permite uma visão da passagem do tempo transcorrido de forma acelerada. 

O conteúdo será exibido em várias galerias do mundo, segundo a equipe de 20 pessoas - entre produtores e antropólogos -, que, do lado de fora da água, acompanharam a trajetória. Entre eles, estão a mestre em antropologia baiana Clara Domingas, o artista plástico Bel Borba e o cineasta Guilherme Burgos. A intervenção é filmada por ângulos diferentes (Foto: Marina Silva/CORREIO) Durante o tempo em que permanecerá na água, Sarah não comerá nada sólido. Toda alimentação é limitada a porções de água de coco e, em alguns momentos, suplementos que auxiliam na hidratação e manutenção da energia. O dia anterior, no entanto, foi de descanso.

Integrante do projeto, a artista Clara Domingos afirmou que há muitas referências envolvidas no ‘mergulho’ de Sarah.“Para o senso comum, pode parecer loucura até, mas isso é arte, é sensibilidade. Tem muita coisa envolvida. A relação das pessoas com o lugar, o mar. É um prazer participar de algo assim, é grandioso”, disse ela à reportagem.Clara, que é de Salvador, relatou que a equipe visitou a Gamboa por cinco sextas-feiras consecutivas para conversar com a comunidade, entender os hábitos e poder reportar um pouco de como é a vida ali à artista. “Tem todo um trabalho de pesquisa, de impacto social e interação com os moradores e visitantes”. Sara resiste ao vai e vem da maré segurando uma corda presa às pedras (Foto: Marina Silva/CORREIO) Resistência No mar, nenhuma barreira impedia a aproximação de outras pessoas à mulher, que, de cabelos soltos, era quase parte da paisagem. Do alto, alguns moradores olhavam o ato com certa estranheza. Outros, aos risos, disseram à reportagem que não tinham “o que comentar”.

A cada uma hora passada, um poema ressoava aos ouvidos de Sarah. O grupo soteropolitano de artistas Pretxs de Rua, formado por jovens de algumas comunidades de Salvador, chamava a atenção da americana para a arte presente ali. Versos sobre a resistência do povo preto eram entoados por jovens que, a princípio, enxergaram a ideia como “maluquice”.

Uma das integrantes do Pretxs de Rua, Lev Brisa comentou que, quando recebeu o convite, não entendeu bem a proposta. “A gente frequenta aqui o local, se reúne e topamos. Mas, claro, no início a gente não entendeu bem, até conversamos com ela, com a ajuda de uma tradutora”, explicou. Grupo de Salvador faz relação entre a performance e a resistência do povo negro (Foto: Marina Silva/CORREIO) O grupo, que costuma recitar poemas e poesias nos coletivos e ruas da cidade, defende que Sarah, ao passar 12 horas no mar, assim como eles, tem a intenção de transmitir força, coragem e resistência.“Resistir, coisa que fazemos todos os dias em nossas vidas, com a arte de rua, correndo atrás do nosso, sempre com nossa arte”, completou Mano Guaxii, outro integrante do coletivo. A longa performance de Sarah será finalizada em meio à maré cheia. Ela não pôde ser ouvida pela reportagem, mas, segundo os produtores, a verdadeira missão cumprida foi a de alertar às pessoas de que, também nas águas tranquilas, o fluxo da maré alterna entre altos e baixos... e pode surpreender.