Empacados: espera para tombar um bem na Bahia ultrapassa os 30 anos

Terreiro aguarda há 16 anos em Salvador

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  • Fernanda Santana

Publicado em 23 de junho de 2019 às 06:22

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Conta-se que, de tão poderoso, Luís Muriçoca era capaz de fazer chover. A reputação atraiu personalidades como Dorival Caymmi, Jorge Amado e Carybé ao Ilê Axé Ibá Ogum, guiado pelo babalorixá até 2002. Queria, mesmo, era ter tido forças para esperar o reconhecimento do templo como patrimônio cultural da Bahia. O terreiro aguarda há 16 anos pelo dia em que, enfim, terá o futuro definido. No estado, 84 bens, incluído o terreiro, esperam o tombamento definitivo junto ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac) há, em média, 13 anos. São 212 bens tombados nas três instâncias - municipal, estadual e federal. 

A lista de espera pelo tombamento definitivo é formada por imóveis e acervos. Esperam desde o prédio residencial mais antigo de Salvador, o Edifício Dourado, na Graça, à casa de Tranquilino Bastos, o poeta abolicionista de Cachoeira. A reportagem conseguiu, via Lei de Acesso à Informação, ter acesso à saga por uma definição junto aos órgãos de tutela ao patrimônio. Na Bahia, existem três possibilidades: o Ipac, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Gregório de Mattos. No Ipac, vinculado à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, a fila costuma ser mais longa e demorada. Adélia no Ibá Ogum: o número 39 da Rua Sérgio de Carvalho, no Vale das Muriçocas, espera tombamento há 16 anos (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) No caso do Ilê Axé Ibá Ogum, é o gradeado branco do terreiro que nos leva a uma história iniciada em 1890, quando os pais de Luís Muriçoca, pai de santo de Maria Adélia de Santana, fundaram o templo. Resistiram a perseguições e até riscos de desabamento, em 1994, junto ao morro encharcado pela chuva. Seu Luís decidiu enfrentar todos os obstáculos. Num leito do Hospital Espanhol, deu para reforçar o desejo de que o Ibá Ogum fosse tombado. O tombamento provisório foi reconhecido em 2002. “Ele falava que queria, mas deu a entrada e não conseguiu. Deixou de mão. Pedia para a gente cuidar disso aqui quando ele morresse”, lembra Adélia. Nas paredes do barracão, fotos de Caymmi e Jorge Amado. Na entrada, a semente dada por Carybé a Luís se transformou numa grande árvore do fruto sagrado obi. O Ibá Ogum é um legado à espera do reconhecimento. “Era de hoje que diz que vai tombar, agora a gente não sabe, né, mãe?”, responde Adélia, depois de perguntada como é a espera. Hoje, são 105 bens tombados pelo Ipac desde 1967, quando foi criado. O interior do Ibá Ogum: lugar de resistência era frequentado por Jorge Amado e Caymmi (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) O tombamento provisório é, como o nome sugere, uma fase temporária de tutela sobre o bem. Provisoriamente tombado, sua relevância já é reconhecida, mas as avaliações seguem. Enquanto isso, incidem regras como as do tombamento definitivo: necessidade de autorização para reforma, por exemplo. O problema não seria, então, o tombamento provisório. Sim, a demora para uma solução definitiva, como aponta o arquiteto e ex-funcionário do Iphan, Francisco Santana, e outros profissionais ouvidos pelo CORREIO.“O problema não é o tombamento provisório, mas sim a demora para definir se o tombamento definitivo deve ou não ser aceito. E isso passa por se ter uma máquina pública. O que existe é uma sobrecarga desumana. O bem fica por anos a fio, enquanto se define e aguarda a solução final”.Primeiro, existe a solicitação de tombamento ao órgão protetivo. Depois, começam as análises técnicas, que incluem visitas ao bem, levantamentos históricos e fotográficos, coletas de depoimentos, elaboração de textos. O material resulta num dossiê futuramente encaminhado a um conselho consultivo que, ou aceita ou remete novamente o pedido ao ponto de partida. Significa dizer: mesmo depois de anos de tombamento provisório, não há nenhuma garantia de que o tombamento definitivo virá.“É um processo que demanda várias análises. Então, não seria só um processo de entrar e conseguir o tombamento. A própria cultura governamental deveria dar uma prioridade”, opina o arquiteto Neilton Dórea, vice-presidente do Conselho de Arquitetura de Urbanismo (CAU). Na periferia de Nazaré, no Recôncavo Baiano, um casarão azul e branco estilo colonial aguarda a definição do seu destino há 31 anos. O conhecido Solar dos Bittencourt foi erguido por uma família tradicional, fundadora de casas de ferro da cidade, ainda em 1861. A resposta se será tombado, ou não, é aguardada desde 1988. Quando atendeu à primeira ligação, Carlos Moura, 70, diretor do casarão transformado num abrigo para idosos, até estranhou. Tombamento? “Eu nem conheço o que é tombamento. Eu queria que houvesse o tombamento e o acompanhamento. Quando eu entrei aqui [2015], as janelas estavam podres, precisamos ir consertando tudo”, ironiza ele, que é diretor da Casa desde 2015.Não há nenhuma compreensão sobre a dimensão artística, arquitetônica e histórica do teto sob o qual ele e outros 48 idosos vivem. O problema, como apurou a reportagem, nasce de uma questão histórica: a equação entre quantidade de funcionários e demanda de análises simplesmente não fecha.  De um em um Se não há pessoal, não há como agilizar um processo naturalmente longo. No mínimo, em condições ideais, especialistas ouvidos pelo CORREIO calculam a necessidade de dois a quatro anos para construir a análise. Nos últimos anos, somente para a decisão do tombamento provisório, por exemplo, o Largo de Santana, no Rio Vermelho, esperou de 1985 a 2006 - 21 anos. No caso dos tombamentos realizados pelo Ipac, a definição final é do Conselho Estadual de Cultura, formado por representantes dos 27 territórios de identidade.  

O diretor do Ipac, João Carlos de Oliveira, acredita que a espera para tombar um bem é até natural num estado como a Bahia, com 417 municípios. Ele não acredita que o problema esteja num pequeno quadro de funcionários, mas “numa análise muito séria e criteriosa”. Existem, no entanto, apenas quatro arquitetos efetivos dedicados aos trâmites do tombamento no órgão - três já solicitaram aposentadoria, sem indicativo de novo concurso."No caso da arquitetura, é mais uma relação de deslocamento pelo território. A Bahia tem dimensões continentais. Afora que tem mais de 400 municípios. É mais uma questão para um território de 17 milhões de pessoas. Não seria uma relação direta de mais ou menos funcionários", justifica. O CORREIO tentou entender, então, se não eram os estudos, mas a apreciação no Conselho Estadual de Cultura (CEC) o motivo da demora. Questionado, o Conselho negou: "O tempo que demora é o tempo necessário para percorrer essas etapas [dos estudos aos pareceres do Ipac]". Disse, ainda, que há apenas dois registros em apreciação, o Fogaréu e o Samba de Roda. 

Na Superintendência do Iphan em Salvador, os pedidos de tombamento também esbarram na falta de pessoal. Um arquiteto efetivo. Um restaurador. Um antropólogo. Um arqueólogo. O número empaca a finalização dos processos. São 186 bens tombados na Bahia pelo órgão federal. É o terceiro estado com maior número de bens tombados, atrás apenas do Rio de Janeiro, com 226, e Minas Gerais, com 201.

No entanto, 51 esperam uma média de 35 anos para resolver alguma pendência ou retificar algum documento. A espera de mais de três décadas diz respeito à primeira fase de análise do pedido no órgão, já que não há nenhum bem tombado provisoriamente pelo Iphan na Bahia, diferentemente do caso do Ipac. A resposta, quando vem, é dada por um dos 25 funcionários.

Há 20 anos, eram, pelo menos, 56 funcionários no mesmo escritório. Lá, o arquiteto Francisco Santana, trabalhou, a partir de 1986, como arquiteto, supervisor, superintendente. Investir num processo complexo como o tombamento deveria significar, acredita Francisco, no investimento em pessoal. “Como conhecer o bem? Através de etapas, levantamento de plantas, fotografias, todas as informações que venham a justificar. Tudo isso é tempo e mão de obra qualificada”, justifica Francisco, que é aposentado pelo Instituto.No último dia 6 de maio, o Iphan autorizou a nomeação de 18 pessoas aprovadas no concurso realizado em 2018. Serão 13 em Salvador. Nos próximos três anos, como descobriu a reportagem, quatro funcionários completam tempo de serviço e já podem pedir aposentadoria. "As pessoas vão se aposentando. O tombamento é um processo complexo, requer estudo multidisciplinar. Poderia haver um trâmite mais rápido", desabafa um funcionário, sob anonimato. 

Desde 2014, o tombamento também pode acontecer no âmbito municipal. Na Fundação Gregório de Mattos (FGM), órgão ligado à Prefeitura e responsável pela análise dos pedidos, são 11 conselheiros e três arquitetos. São cinco bens tombados e a espera média para a definição do tombamento, como calculou o CORREIO, foi de dois anos. O prazo para elaborar o dossiê técnico é de 18 meses, renovável por outros 18. Na diretoria do Patrimônio e Humanidades da FGM, Milena Luisa justifica outro instrumento de tombamento para incrementar o reconhecimento público de bens. "Um processo de tombamento demanda uma instrução criteriosa, tanto para evitar questionamentos quanto a legitimidade do processo de reconhecimento dos méritos do bem cultural enquanto patrimônio, como também para documentar o seu estado no momento do tombamento e o que deve ser preservado".O Ilé Asé Kalé Bokun, por exemplo, primeiro terreiro Ijexá da Bahia, aguardava havia 12 anos o tombamento junto ao Ipac. No mês de março, veio a decisão do tombamento municipal. Nada impede, no futuro, o reconhecimento a nível estadual. Mesmo que, ainda hoje, o significado do tombamento seja envolto por dúvidas. 

Tombou para quê?  Na entrada da Rua Almeida Brandão, em Plataforma, o Padre Antônio Vieira proferiu sermão à Irmandade dos Pretos de Nossa Senhora do Rosário. Também foi ali instalado o primeiro aldeamento indígena dos jesuítas no Brasil. Naquele mesmo endereço, em 1875, surgiu a fábrica têxtil São Braz, que alimentou o surgimento de uma região tipicamente operária. Era de onde saía o sustento de boa parte das famílias. Hoje, a antiga fábrica tombada pelo Ipac desde 2002 derruba sobre os moradores a poeira das ruínas de sua história. Do lado de dentro, não resta quase nada. 

Os vizinhos passam pela antiga fábrica com temor e desânimo. Principalmente os que fizeram parte diretamente daquele que é um símbolo do Subúrbio Ferroviário de Salvador.“Eu tô aqui falando com você assim, mas tô com medo. Eu entrei esses dias para pegar uma bola e tava tudo rachado”, lembra Jorge Teles, 76, antigo tecelão do negócio que era então gerido pela família Martins Catarino. Jorge: medo de fábrica considerado patrimônio cair (Marina Silva/CORREIO) O caso da fábrica simboliza o desconhecimento a respeito do significado do tombamento. Mas não só: expõe problemas como falta de fiscalização e punição a quem deteriora o que deveria tutelar. Ninguém da família Martins Catarino foi encontrado pela reportagem, nem o Ipac respondeu se alguma multa foi expedida. 

O tombamento é um mecanismo que, teoricamente, garante a preservação do imóvel para evitar possíveis descaracterizações do patrimônio. A fachada de bens tombados como a fábrica, por exemplo, não pode ser demolida. Do ponto de vista do morador, o tombamento pode garantir medidas compensatórias. Desde 2017, por meio do Projeto Revitalizar, coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), donos de edificações tombadas podem ter benefícios fiscais como a redução de até 50% no IPTU.

A transformação em patrimônio também pode valorizar uma região, como tem ocorrido nos últimos anos, no Santo Antônio Além do Carmo.“O fato de ser tombada não o valoriza imediatamente. Embora, a gente possa dizer que, a valorização do Santo Antônio nos últimos anos, por exemplo, o m² passou a valer muito mais, tanto em termos de aluguel quanto venda”, acredita Nivaldo Andrade.Na Holanda, a valorização é imediata: viver numa área tombada é viver numa região valorizada no mercado. Na cidade de São Paulo, algo semelhante começa a ocorrer, cita Nivaldo. Por outro lado, impõe regras ao uso do imóvel. Por exemplo, qualquer modificação deve ser precedida de um pedido ao órgão responsável. No entanto, sozinho, o tombamento não consegue impedir estragos. O sobrado português azulejado e azul, na Praça Cayru, também virou ruínas. Tombado em 1969 pelo Iphan, o teto da estrutura despencou depois de anos de abandono, em 2017.

 A ausência de normas claras, ou pelo menos devidamente explicadas, também contribui para os problemas após o tombamento. É impossível até citar quantos imóveis tombados passam por deterioração. A reportagem questionou ao Iphan e ao Ipac, órgãos com maior número de bens tombados do estado, quando realizaram as últimas vistorias. Neste ano, disse o Ipac, foram realizadas visitas a 19 locais. Inclusive uma à Fábrica São Braz, mas o resultado não foi informado. Já o Iphan não atendeu à solicitação.

O presidente da Direção Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) Nivaldo Andrade acredita que muitos proprietários, inclusive a própria sociedade civil, sequer reconhecem o significado de tombamento. Daí, vêm outros problemas, como intervenções sem autorização.

A poucos metros de distância, três casas do bairro da Saúde, em Salvador, são consideradas patrimônio cultural baiano. Também ali, há o questionamento: tombou para quê? “Sei que não posso mudar a fachada, procuro saber. Mas tombamento? Mas nunca veio ninguém aqui não”, comenta, duvidosa, a moradora que não quer ser identificada. 

Desde 2018, a Faculdade de Arquitetura da Ufba e o Iphan trabalham num estudo que deverá sinalizar um uso correto dos imóveis tombados. "Não estamos preocupados com o uso, o que vamos definir é termos de ocupação do imóvel, o que precisa ser preservado e o que pode ser transformado“, explica Nivaldo. 

Não existe qualquer legislação específica sobre o caso da demora para o tombamento definitivo. Resta a espera pelo título. E, depois dele, a espera para que o bem não seja perdido. De frente para a fábrica onde o pai trabalhou, Marcos César, 52, lamenta a falta conservação: “Essa fábrica era muito bonita. Agora, passaram cimento por cima”. Um cimento que, em toda a cidade, insiste em cobrir a história.

Modalidades de tombamento, cadasmentro e registro Sítios arqueológicos (cadastramento do bem): São considerados sítios arqueológicos os locais onde se encontram vestígios positivos de ocupação humana, os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeamento, "estações" e "cerâmicos”, as grutas, lapas e abrigos sob rocha. Também são consideradas inscrições rupestres ou locais com sulcos de polimento, os sambaquis e outros vestígios de atividade humana.

Patrimônio material: Protege, principalmente, edificações, paisagens e conjuntos históricos urbanos. Os bens podem ser imóveis como os cidades históricas, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; ou móveis, como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.

Patrimônio imaterial (registro de proteção): Práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). É passível de proteção desde 1988. 

*Com supervisão da editora Mariana Rios