Encantar-se é retorcer o frequente

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  • Da Redação

Publicado em 30 de março de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

No vórtice-Brasil, diante das mortes que se materializam como um horizonte mais possível que um corpo em pé — literais e por desencantamento —, é árduo celebrar os 472 anos de Salvador. Sobretudo, no mês de março, em que as águas têm sido mais de pranto e sudorese indignada; em que, desde 2018, a execução da vereadora Marielle Franco se sobrepôs à data de nascimento da Dra. Carolina Maria de Jesus e do Dr. Abdias do Nascimento — ambos, aliás, também compartilham o mesmo ano natalício. Por outro lado, peço-lhes caminho, não para fazer festa à minha cidade nativa (com os seus paradoxos intrínsecos), mas para rememorar uma morte por encanto que acontecia há 50 anos, no dia 19 de março. Eis aqui a morte que se contrapõe à necropolítica, ao biopoder, ao arco do esvaziamento. Eis a morte como transmutação de memória. Nem a morte meramente biológica nem a morte por obra de alguma divindade. A morte como construto da vida e da poética de uma perspectiva. Encantar-se é retorcer o frequente e firmar-se na solidez do que as mãos não tocam.

Para diversos terreiros de linhagem congo-angola, na Bahia, desde tempos mais antigos, o dia 19 de março é um marco para o encerramento parcial das atividades espirituais mais destacáveis, numa interpretação especial do Tempo da Quaresma. Nesse referido dia, em 1971, encantava-se Joãozinho, que, embora não nascido em Salvador, foi na capital da Bahia que trespassou as fronteiras fundas do Candomblé — esta complexa chave epistemológica que o racismo e o neopentecostalismo devem, de uma vez por todas, parar de tentar aniquilar. O que eu quero destacar é a possibilidade de encantação por intermédio de uma morte que faz viver, em que pesem a angústia da finitude e a dor de um laço desfeito como que pela ação da chuva. É a morte, vestindo-se bela para dançar, conversar com o que respira e conduzir a comunidade, conforme se pode experienciar com os Egungun de Itaparica. Para confirmar o pedido de silêncio do dia 19 de março, procedo, 48 anos depois do encantamento de Joãozinho da Gomeia, ao encantamento da Makota Valdina. A Professora Valdina Pinto nasceu e viveu, até encerrar o seu infinito no corpo, no bairro do Engenho Velho da Federação. João Alves de Torres Filho, Joãzinho da Gomeia ou Tata Londirá, que também nasceu no mesmo ano que os aludidos Carolina de Jesus e Abdias do Nascimento e fazia aniversário dois dias antes do aniversário de Salvador, era consagrado a Mutalambô ou Oxossi — nkisi, orixá, força da busca, da expansão, do conhecimento, da caça (se, sobretudo, compreendida nesses termos). Valdina de Oliveira Pinto, Makota Valdina ou Makota Zimewanga era consagrada a Kavungo, à terra, onde se vive-morre-vive e onde a busca pelo infinito a partir da finitude — inescapável obra do nkisi caçador — pode erigir-se. 

No aniversário de Salvador, atenho-me a esse chão de cidade, que, tendo uma escultura-guardiã de Oxossi que acarinha a de Mãe Stella, perto da Av. Carybé, cujo nome homenageia o artista-peixe, outro filho de Oxossi — assim como Mãe Stella e Joãzinho da Gomeia — , deve lembrar-se sempre de que é floresta, isto é, de que nem árvores nem pessoas devem tombar como números usados pelo capital; só devem deitar-se para escutar as narrativas de Kavungo no mais (extra)ordinário da poesia que penetra pelos pés. 

Tiganá Santana é cantor, compositor e poetaOpiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores