Encruzilhada cultural: por um livramento das amarguras do discurso

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  • Da Redação

Publicado em 15 de novembro de 2018 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Além da necessária atmosfera caótica, meus processos criativos guardam também uma tentativa extrema de organização. Talvez seja a tensão entre o caótico e o estruturado que determine alguma linguagem no que faço. Gosto de pensar sobre os processos de criação. Não exatamente quando estou neles. Pensar sobre eles (os processos criativos) me permite dialogar com outros processos (não-criativos). Na verdade, entendo os processos como uma verdadeira colcha de retalhos de diferentes modos de criação. O que diferencia os processos talvez seja a maneira que utilizamos os modos que encontramos pelo caminho da nossa vida prática. No meu caso, o confronto entre a realidade e a ficção sempre foi um grande ponto de partida para criar. 

Quando me solicitam uma obra criativa por encomenda, quase sempre aquele que me convidou vira personagem da criação. Tento agregar pra dentro da narrativa ficcional o próprio convite realizado e a tensão de criar algo encomendado. E gosto disso! Embora muitas vezes o convidado não sinta o mesmo; pois a obra deixa de ter um eixo central, e passa a ser múltipla. Como um roteiro de cinema com vários plots circulares. Essa multiplicidade dialoga com a ideia do sujeito múltiplo; do personagem multifacetado que se dá ao direito às mudanças abruptas de opinião, numa dinâmica muito próximo da que temos na vida prática. Aliás, essa multiplicidade pode ser o eixo desse ensaio que escrevi a convite desse jornal por ocasião do Novembro Negro.Todos os procedimentos poéticos ocidentais e não ocidentais utilizados na contemporânea diáspora (e isso inclui todas as Américas) são legítimos. Fomos atravessados historicamente por deslocamento de povos. Esse processo diaspórico talvez legitime o artista negro diaspórico a tratar de temas diversosPara tanto, seleciono três palavras que podem me nortear nesse caos narrativo, que (como falei no início) sempre o submeto a uma tentativa extrema de organização. As palavras que escolho para pensarmos o processo criativo do artista diaspórico-negro são: memórias, atravessamento e diáspora. Não tentarei pensá-las isoladamente, mas em conjunto. Sempre mirando poéticas de criação dos negros (as) do lado de cá da diáspora. Tenho pra mim que nossas criações partem de memórias e de antimemórias (que são aquelas memórias ainda não acontecidas). Quando o mundo vai se tornando cada vez mais parecido com aquilo que criamos nas ficções, terminamos por nos perguntar se o que foi criado ficcionalmente, teria sido uma reverberação de algo que já estava acontecendo. Seria esse o poder visionário dos artistas? Em todo caso, não é sobre esse poder visionário (ou de antimemória) que se trata este ensaio. Mas desse início de criação que é a memória poética do artista diaspórico negro.

Embora minhas memórias façam parte do meu processo criativo de narrativas-ficcionais, elas nunca se articulam como um gênero literário memorialista; tão consagrado por alguns autores da literatura, como o mineiro Pedro Nava. As minhas negras memórias surgem como um dispositivo que tenta aproximar realidade e ficção. E, nesse sentido, vale a pena trazer para este ensaio, a memória de uma cobrança feita aos artistas da diáspora negra (friso na palavra negra para não esquecermos que existem outras etnias diaspóricas). Cobrança esta que se assenta no direcionamento temático, sobretudo dos dramaturgos, roteiristas e escritores negros (as).

No meu caso específico, me vem à memória a cobrança para eu que escreva somente peças teatrais que contemplem temas étnico-raciais. Como bem assinala o contemporâneo filósofo da República dos Camarões Achille Mbembe (em seu livro A Crítica da Razão Negra), o negro e a negra adquiriram sentidos e significados oriundos da agressiva e historiografada colonialidade. E na atmosfera do capitalismo (em suas diversas concepções econômicas possíveis) fomos agregados (ou mesmo fetichizados) de valores que esconderam (e talvez ainda escondem) riquíssimas subjetividades negro-diaspóricas e filosóficas. De modo que em nossa contemporaneidade, a exigência de uma escrita narrativa monotemática (estritamente relacionada às questões identitárias e/ou étnico-raciais) é muito recorrente. Acontece que os de melanina acentuada (como eu chamo os negros e negras) possuem não somente questões identitárias, mas também questões existenciais. Sobretudo aqueles da diáspora (ou do lado de cá).

Nós, da diáspora negra, estamos numa encruzilhada referencial (tomando de empréstimo um conceito cunhado pela Profa. Dra. Leda Maria Martins em seu livro A Cena em Sombras), que nos legitima a utilizar simultaneamente referências ocidentais e africanas. Ambos os procedimento de elaboração poética (ou de criação artística) nos pertencem por uma legitimação histórica. Por isso que a exigência de que narrativas negras contemplem única e exclusivamente temas étnico-raciais não encontrem coerência teórica, prática e muito menos historiográfica. 

Na verdade, essa exigência constitui um contrassenso socialmente patológico e, por vezes, risível. A partir da análise de recepção de leitores e espectadores de obras da negrura, as escrituras negras possuem aderência tanto nas questões identitárias quanto nas questões existenciais-filosóficas; vezes de modo não intencional e outras vezes intencional, planejado e estruturado. Essas narrativas negro-diaspóricas simplesmente são resultados da legítima encruzilhada cultural africana e ocidental. Talvez por isso adquiram sempre um aspecto comicamente irônico e sarcástico, que leva o espectador-leitor ao riso escondido e envergonhado; livrando-nos poeticamente de uma possível amargura do discurso. 

Na poética da minha escrita ficcional, o livramento da amargura do discurso talvez esteja dentro daqueles procedimentos de elaboração organizada (em contraposição à minha parte caótica). Na minha instância organizada de criação, procuro tratar a ironia como um gênero narrativo, direcionando a obra para uma possível leveza e diversão, mesmo nos momentos mais cruéis e vilânicos da história inventada. E não abro mão de usar procedimentos considerados ocidentais.Com o processo diaspórico negro, estamos todos numa legitimada e autorizada encruzilhada poética de referência cultural, onde as fontes primeiras nem sempre são aquelas que ocidentalmente pensamos serEm conversa com o teatrólogo senegalês Mamadou Dioul sobre procedimento ocidentais e não-ocidentais, tão discutidos em tempos de descolonização do pensamento, ele me disse ter percebido “...essa campanha teórica muito bonita por aqui no Brasil de descolonizar processos de criação. Mas vocês devem tomar cuidado. Muitos dos procedimentos ditos ocidentais, na verdade podem não o ser. Por exemplo, aqui vocês legitimam a quebra da quarta parede (no teatro) quase sempre ao alemão Bertolt Brecht que teve atividade teatral intensa na primeira metade do século XX. No entanto, eu e meus familiares fazemos teatro embaixo das árvores há muito mais tempo que Brecht... e nunca tivemos a tal da quarta parede. Então na verdade, quem foi que elaborou esse processo de criação?” 

Ainda em conversa com o Dioul, ele citou a fábula da água. Há muito tempo, várias comunidades na África ficaram sem água. Foi quando uma pequena aldeia africana descobriu uma única fonte aquífera nas suas redondezas. E passou-se a distribuir água para todas as comunidades. Uma recebia, e passava para outra. A rede de distribuição ficou tão intensa que ninguém mais sabia qual era a fonte primeira. Essa fábula se encaixa perfeitamente nos processos encruzilhados de criação dos negros e negras atravessados pela diáspora. Todos os procedimentos poéticos ocidentais e não ocidentais utilizados na contemporânea diáspora (e isso inclui todas as Américas) são legítimos.

Fomos atravessados historicamente por deslocamento de povos. Esse processo diaspórico talvez legitime o artista negro diaspórico a tratar de temas diversos, e utilizar modos de feituras tradicionais e não tradicionais, vanguardistas e não vanguardistas, narrativas lineares e não lineares. Podemos fazer uso da comédia ocidental, da tragédia ocidental, da narrativa clássica, da narrativa circular do griôt, dos contos-dilemas africanos, das narrativas fantásticas, absurdas, dadaístas, dos alarinjôs nigerianos, das narrativas dos orixás, dos voduns da natureza. Enfim, de todas as formas que atravessaram e atravessam historicamente o nosso caminho criativo. 

Pois, com o processo diaspórico negro, estamos todos numa legitimada e autorizada encruzilhada poética de referência cultural, onde as fontes primeiras nem sempre são aquelas que ocidentalmente pensamos ser.

Aldri Anunciação é ator, dramaturgo e apresentador de TV.