Enfermeira anda de jegue para atender moradores de zona rural na Chapada

Ela quis desmistificar "a elitização do profissional de saúde"

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  • Fernanda Santana

Publicado em 28 de junho de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo Pessoal

Sobre o lombo de um jegue, a enfermeira Monaliza Sena, 31 anos, segura nas mãos os kits de proteção contra o coronavírus e com os pés orienta o animal na zona rural de Boa Vista do Tupim, na Chapada Diamantina. É como a profissional, funcionária de um posto de saúde, decidiu chegar às casas mais distantes da região.

Desde a primeira vez que subiu no animal para agilizar o serviço, recebeu centenas de comentários em suas redes sociais, mensagens e ligações. “Queria desmistificar a elitização do funcionário de saúde”, conta ela, nativa da cidade.Monaliza contou ao CORREIO sobre sua rotina, as dificuldades de trabalhar em uma área rural, o que mudou com a pandemia e como o jegue - ainda sem nome e emprestado de outro nativo - se transformou em seu parceiro.

Leia o diário de uma enfermeira que usa jegue como meio de transporte: 

"Quando cheguei ao Assentamento Aliança, área rural daqui de Boa Vista do Tupim, os moradores já esperavam a equipe de saúde. O último dia 5 foi de distribuição – álcool em gel e informação para eles se protegerem contra o coronavírus – e de vacinação contra a gripe. Quem é do interior sabe que a área rural é cheia de cancelas, cercas e arames. De carro, precisamos ficar descendo, abrindo e fechando as coisas. Foi quando tive a ideia de pedir um jegue emprestado de um morador, Jorge, para percorrer o assentamento onde moram 80 famílias. Todos ficaram surpresos, rindo. Ninguém espera que uma profissional de saúde ande de jegue. 

Não era, nem é, nada pretensioso, quero apenas dinamizar o serviço e agilizar as coisas. Meu posto atende a cidade e duas áreas rurais. O jegue já é um meio de transporte por todos daqui. Mas, queria desmistificar a elitização do funcionário de saúde. E é o que tem acontecido. A única surpresa sou eu, enfermeira, estar nessa posição. Muitas vezes existe uma barreira entre nós e pacientes porque falta essa identificação. 

No primeiro dia em que andei de jegue, vi o quanto eles ficaram felizes porque vivenciei sua rotina. Alguns são bem pobres. Sou filha daqui e sempre andei de cavalo e de jegue. Criança, eu saía da casa de minha avó de jegue até a feira da cidade. Todos se emocionam por me ver como um deles e eu digo isso com os olhos marejados. Monaliza e o jegue que pega emprestado de nativo para chegar a áreas mais distantes (Foto: Acervo pessoal) O coronavírus começa a avançar na vizinhança como em Itaberaba, onde já são mais de 200 casos. Temos quatro casos. Poder me aproximar dessas pessoas, levar informação como uma delas, é o que importa para mim. Nossa vida é pacata, a cultura é forte e é o que eu gosto. É bom poder ajudar quem já me colocou no colo, meus amigos de infância, quem me viu nascer. Andar de jegue deu tão certo que decidi adotar em outras idas. É impressionante como criamos uma conexão.

Voltei ao assentamento uma semana depois e todo mundo brincou. Novamente, peguei o jegue de Jorge e circulei pelas casas. Fiquei feliz em ver como nosso trabalho ali tinha funcionado. Tínhamos conseguido atingir os moradores. A cancela estava fechada com cadeado e eles improvisaram um lavatório na entrada para, quando você entrar, lavar as mãos. Há muitos profissionais de saúde em áreas remotas que sabem bem o que eu estou falando.

Chego ao posto às 8h e vou pelo menos uma vez por mês a essas áreas rurais. O carro do posto demora até uns quarenta minutos para chegar. A internet mudou bastante a vivência deles, mas muitos não têm condições para buscar informação por vários motivos. Venho ao trabalho a pé e posso, como qualquer outro, subir em motos, jegues, cavalos, para chegar a quem precisa. Aqui, um grito de socorro é ouvido pela cidade toda.

Meu trabalho, como de qualquer outro profissional de saúde, é cansativo, mas recompensador. Tenho recebido mensagens de todo o Brasil, impressionados porque eu comecei a andar de jegue para me aproximar das pessoas. Não fiz nada de mais. O carro não pode chegar onde o jegue chega e essa é uma imagem representativa de como é um trabalho de amor.

Todos os dias, convivemos com os riscos, principalmente durante a pandemia. Não sabemos se as pessoas que chegam ou as que atendemos são assintomática. Minha mãe é enfermeira e trabalhou na cidade, atendendo também essas pessoas, durante 20 anos. Acho que foi um caminho natural e fico feliz, muito feliz, em poder ajudar. Às 17h, mais ou menos, termino o trabalho e vou para minha casa a pé. É uma distância de só cinco minutos. As coisas mudaram um pouco, ninguém me chama mais para um bolo, um lanchinho, um almoço, como faziam. Aqui, todos se conhecem e vivem próximos, tomando cafezinho no portão.

Depois do trabalho, já em casa, fico ansiosa como a maioria das pessoas ficam quando vêem o tanto de notícias. Moro sozinha e já passo meus dias envolvida no assunto. Mas, ter voltado para cá – depois de cursar Enfermagem em Feira de Santana – e poder atuar em um momento como esse, me mostra que a escolha foi certa. De jegue, de mula, de cavalo, seja lá como for, o que importa é que a saúde chegue para todos. Se for com carinho, melhor ainda".