Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos

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  • Kátia Borges

Publicado em 27 de julho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Uma das coisas mais bonitas que já vi na vida foi João Gilberto Noll na Bienal do Livro da Bahia, em abril de 2009, lendo com voz pastosa trechos imensos de seu romance, Lorde, como se a plateia não estivesse ali. Sem alterar o tom de voz e a calma, ele seguiu firme na leitura até o fim enquanto a sala esvaziava lentamente, porque todos esperavam alguma pirotecnia que justificasse o preço dos ingressos.

Admiro sinceramente quem consegue entregar ao seu público som e fúria em um pocket show, mas creio que um escritor nunca será aquilo que dele se espera. A teoria da literatura tenta dar conta dos textos e seus arredores há séculos. Mas há algo desta arte que segue intocável, em algum recôndito que a escrita não alcança. E é incerto que a decifração desse mistério tenha interesse para os leitores.

É compreensível, portanto, que Noll tenha surpreendido os pagantes com seu aparente alheamento das normas pirotécnicas de eventos do gênero. No entanto, ali estava o tesouro verdadeiro do encontro com um demiurgo. Presumo que seja necessário achar um ponto de equilíbrio entre o que sonhamos e o que somos, o que esperamos e o que pode ser oferecido, o conhecimento do mercado e o real.

Para além do mercado, resiste a relação íntima de cada escritor com a obra que ele é capaz de produzir efetivamente a partir de seus recursos. Caio Fernando Abreu citava Nélida Piñon sobre os desafios de escrever: “todo dia alguém bate em sua porta insistindo para que você desista”. A frase me remete à imagem reversa dos vendedores de enciclopédia, de porta em porta, de segunda a segunda, a melhor oferta.

Também os difusores da revista Sentinela prometiam o Reino dos Céus, todos muito aprumados, caminhando léguas sob a chuva e o sol para pregar a palavra de Deus. “Os poetas de ontem são os detetives de hoje. Passam a vida farejando o centésimo verso, resolvendo um caso, manquitolando exaustos em direção ao pôr do sol”, escreve Patti Smith no solilóquio de seu personagem com um controle remoto em Linha M.

Quando perguntaram a Roberto Piva, durante uma entrevista, como é que ele escrevia, ele respondeu simplesmente: “à caneta”. E há uma longa lista de frases que, embora não seja cansativa, tem sua hora própria e lugar. A minha predileta é a de Torquato Neto, um clássico: “Escute meu chapa: um poeta não se faz com versos”. Mas, claro, ele não se referia aos oráculos e aos guardiões dos templos.

Há os que ditam as regras sobre quanto de papel deve ser consumido para o bem da humanidade, ou de certas seitas secretas. Há mais escritores que leitores nesse mundo, de modo que há de haver seletividade pelo bem de incerta qualidade que muda de acordo com a época. Por essa lógica, só aqueles que defendem a preservação das árvores possuem as chaves e as certezas. Que todos os outros parem de escrever e, de imediato, passem a consumir suas enciclopédias e a ler suas Sentinelas.

Não é má ideia. Lembram o desafio proposto por Rainer Maria Rilke em Cartas a Um Jovem Poeta? “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos”. É preciso, sobretudo, alguma coragem para berrar no caminho ao matadouro. E mais ainda para seguir a vida inteira na terceira margem do rio, como aquele personagem de um dos contos de Primeiras Histórias, de Guimarães Rosa. “Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”.