Especial Irmã Dulce: durante encontro com o papa João Paulo II, em Salvador, freira foi ovacionada pelos baianos

João Paulo II fez questão de ir visitar Irmã Dulce no leito de morte em 1991

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  • Da Redação

Publicado em 8 de maio de 2011 às 09:54

- Atualizado há um ano

Alexandre Lyrio|Redação CORREIO

O dia amanheceu com céu escuro e nuvens carregadas, mas um sol do tamanho do amor de Deus parecia brilhar no coração de Irmã Dulce. Era 7 de julho de 1980. Havia meio milhão de pessoas nas ruas de Salvador. O helicóptero vindo da Base Aérea enfrentou vento forte, mas pousou no Centro Administrativo da Bahia (CAB).

O papa João Paulo II estava aqui, prestes a celebrar uma missa campal. Foi recepcionado com berimbaus, atabaques e agogôs. O livro Irmã Dulce dos Pobres descreve aquela terça-feira como um dia em que “freiras acomodaram-se em galhos de árvores, crianças fantasiaram-se de motivos religiosos, mulheres acenaram lenços brancos e jovens choraram de emoção”. Irmã Dulce alimentava uma paixão cristã pelo coroa de cabelos grisalhos e cheio de carisma. Não perderia o momento por nada. Nem por aconselhamento médico. A religiosa foi alertada em relação aos riscos que corria por conta da chuva. Com problemas no pulmão, a freira estava com a saúde muito fragilizada. 

“Ela tomou uma chuva danada no CAB e acabou contraindo pneumonia. Quem poderia impedir Irmã Dulce de ver o papa?”, questiona, sem ter uma resposta, o cirurgião Taciano Campos, que está nas Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) há 39 anos e é o atual diretor médico do Hospital Santo Antônio. Depois do encontro, a freira passaria 20 dias internada numa clínica cardiopulmonar. Mas, para ela, tudo valeria a pena.

Ovação Além de chamada para subir ao altar e receber a bênção especial do papa, Irmã Dulce foi aclamada pelo povo. Quase levada pela força do vento, mostrou que, em sua terra, era tão pop quanto o papa. Então residente do Hospital Santo Antônio, o anestesista Edmur Agostinho não foi ao evento, mas relata o momento em que ligou a TV para assistir à saudação popular ao papa e, em vez disso, viu o nome da freira baiana ser gritado.

“Acabei vendo o povo baiano aplaudindo e gritando: ‘Viva Irmã Dulce. Irmã Dulce é nossa mãe’”. Doutor Edmur, porém, não se contentou e, à noite, ligou para a religiosa. Ela era a modéstia em pessoa.

- Doutor Edmur, fiquei tão envergonhada... Aquele povo todo gritando o meu nome...

No rápido encontro, sem imaginar que um dia se tornariam beatos aos olhos da Igreja, o papa e a freira pouco conversaram. Ela ouviu de sua santidade uma mensagem de incentivo e ganhou um presente. João Paulo tirou do bolso um objeto. Era um terço. Entregou-lhe e disse:

- Continue, Irmã Dulce. Continue...

No relato da própria freira à sobrinha, Maria Rita, Irmã Dulce ficou muda de emoção, mas não houve mais diálogo.Aeroporto Ir ao CAB não foi a única peripécia da freira pelo papa. Tomando vento e friagem, ela havia ido logo cedo ao então Aeroporto Internacional Dois de Julho. Quando o santo padre pisou em solo baiano, a freira tentou um primeiro contato.

Como não foi colocada na lista de autoridades que cumprimentariam sua santidade na chegada, contou com a ajuda de um dos muitos “padrinhos”. No caso, o general Gustavo Moraes Rego. Mas, uma vez na fila, a freira não só cumprimentou o papa como lhe deu um abraço.

Irmã Dulce sabia que teria de se esforçar para chegar perto do líder da Igreja. O cerimonial do papa não previa visita às obras da freira. Ele apenas passou bem perto, pela Avenida Bonfim, conhecida como Dendezeiros, em direção à comunidade dos Alagados, onde o papa rezaria missa.

Para se despedir, Irmã Dulce ainda iria novamente ao aeroporto. No último encontro, o sumo pontífice pareceu antever o problema que o médico já havia alertado. E, dessa vez, o “continue, Irmã Dulce” veio acompanhado:

- Continue, mas cuidado com sua saúde. Você precisa olhar um pouco mais para você...

João Paulo II fez questão de ir visitar Irmã Dulce no leito de morte em 1991

Freira recebeu visita do papa no leito de morteTalvez nem João Paulo II soubesse, mas o seu alerta em relação à saúde de Irmã Dulce era  profético. Os pulmões frágeis não só se tornariam um problema grave para a freira, como fariam com que o próprio pontífice a reencontrasse, depois de 11 anos, no leito de morte.

Segundo a biografia escrita pelo italiano Gaetano Passareli (Irmã Dulce – O Anjo Bom da Bahia), na segunda vez que veio ao Brasil, o papa fez questão de oferecer a Irmã Dulce uma bênção particular. Em 20 de outubro de 1991, com o então arcebispo primaz dom Lucas Moreira Neves, entrou no quarto transformado em UTI e apertou sua mão, mais magra do que nunca.

Por ter sido submetida a uma traqueotomia, onde foi acoplado o aparelho de respiração artificial, Irmã Dulce teve dificuldades para falar. O papa deu-lhe a benção apostólica e, antes de ir embora, virou-se para o arcebispo. Disse-lhe uma frase de resignação, publicada no dia 15 de outubro, na mensagem dominical que dom Lucas escrevia no Jornal A Tarde. - Este é o sofrimento do inocente. Igual àquele de Jesus...

Duas servas da caridadeEm julho de 1979, Madre Teresa de Calcutá recebeu convite de dom Avelar para vir a Salvador fundar uma casa da Ordem Missionária da Caridade, no bairro de Alagados. Irmã Dulce quis conhecer a famosa religiosa, que receberia o Prêmio Nobel da Paz naquele ano. Com dificuldades para manter as obras, Irmã Dulce chegou a oferecê-la para a colega, que, de acordo com o que publicou o Jornal Tribuna da Imprensa (RJ), recusou.

- Eu desejo trabalhar para os pobres, mas sem a responsabilidade financeira.

Dulce ofereceu a gestão de suas obras para Madre Teresa de Calcutá, que não aceitou

Na ocasião da vinda de Madre Teresa, uma declaração do então arcebispo dom Avelar causou certo mal-estar na cidade, quando ele disse: “Não conheço testemunho maior de amor aos humildes”, referindo-se a Madre Teresa. Sem tirar os méritos da freira estrangeira, um forte protesto do povo e da imprensa se seguiu. “E o Anjo Bom da Bahia?”.

O Globo chegou a ponto de denunciar que autoridades civis e religiosas doaram dinheiro e terrenos para a freira indiana, enquanto durante 40 anos Irmã Dulce “mendigava pela sua obra”. Sem graça, dom Avelar se explicou aos jornais. “São estilos diferentes, embora servas da mesma caridade”.

Madre Teresa de Calcutá seria beatificada 18 anos depois de encontrar com Irmã Dulce. Morta em 5 de setembro de 1997, seu processo de beatificação foi concluído em 2003 e tornou-se o mais rápido da história. O próprio papa João Paulo II foi o responsável pela rapidez do processo.