'Espetáculo causou profundo incômodo', dizem professores negros da Ufba em carta aberta

No texto, docentes da Escola de Teatro pedem audiência pública para discutir racismo

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  • Tailane Muniz

Publicado em 8 de junho de 2019 às 16:49

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO

Em carta aberta, quatro professores da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba) afirmam que o espetáculo Sob asTetas da Loba, que esteve em cartaz até o domingo passado (2),  “causou em parte do público um profundo incômodo com a representação do negro e da negra”.

A declaração,  assinada pelos professores doutores Alexandra Gouvêa Dumas, Érico José Souza de Oliveira, Licko Turle e Stênio José Paulino Soares, comenta a  manifestação realizada pelo coletivo Dandara Gusmão - que, no sábado (1º), subiu ao palco do Teatro Martim Gonçalves, no Canela, e interrompeu a peça com a justificativa de que a montagem é racista. Com direção do baiano Paulo Cunha, a encenação é uma adaptação de texto do paulista Jorge Andrade.

Em relato, os professores afirmam que o espetáculo reforça estereótipos de representação dos negros, “já sinalizada na própria história do teatro brasileiro, como a empregada doméstica que serve sexualmente ao filho branco dos patrões; o negro assassino, estuprador e violento; a colega negra desbocada e sem modos de uma moça branca e educada; a prostituta negra lasciva, sexualizada e violenta”. Já o produtor da peça, Victor Gonçalves, afirma que o texto “é o retrato de uma sociedade oligárquica que expõe, em quatro peças simultâneas, a desigualdade social entre brancos e negros”. 

 Ao CORREIO, Alexandra Gouvêa se limitou a dizer que a carta foi produzida e direcionada à comunidade interna da escola, além das entidades e organizações, como Ordem dos Advogados (OAB), Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult-Ba),  Ministério Público do Estado (MPE), Associação dos Professores Universitários da Bahia (Apub), Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), e aos movimentos negro e feminista, a quem solicitam apoio para a realização de uma audiência pública para  discutir o racismo. 

A professora explicou que não se pronunciará individualmente, por compreender que o objetivo do conteúdo partiu de uma ideia coletiva com demais colegas. Alexandra também não citou a suposta agressão sofrida pela professora Deolinda Vilhena, que afirma ter sido atingida no rosto ao ter o celular puxado por um dos membros do Dandara Gusmão, o estudante da Escola de Teatro, Dêvid Gonçalves.

Agressão e debate Procurada pela reportagem, Deolinda disse que foi agredida no domingo (2), dia seguinte à intervenção do grupo no palco do teatro, quando realizavam uma segunda manifestação, desta vez, na parte externa. Ela comentou, ainda, que registrou uma Certidão de Ocorrência  na Polícia Federal. "Fui à polícia na terça-feira (4). Fiz o registro contra Dêvid, quanto à agressão física e verbal sofrida por mim”, afirmou a professora, que informou ter ido acompanhada de um representante da Coordenação de Segurança da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

A reportagem tentou contato com o estudante, por meio de telefone e redes sociais, mas não obteve respostas. Em nota divulgada na página do coletivo no Facebook, o grupo Dandara Gusmão se refere à interrupção do espetáculo como “uma forte atitude”. “Não é de hoje que sabemos como o racismo funciona na Escola de Teatro da UFBA, como também no seus diversos mecanismos se sustentam em oprimir nosso povo para conquistar nosso silêncio”, diz a nota [veja íntegra abaixo]. O grupo também publicou um vídeo do momento em que Deolinda afirma ter sido agredida. 

Veja vídeo

Confira a nota oficial divulgada pelo grupo Dandara Gusmão

Na carta, os professores afirmam que o momento é “conturbado e tão significativo em termos de mudanças de perspectivas para uma universidade e sociedade mais inclusiva e justa, através de discussões sobre questões da atualidade que reverberam diretamente no seio das instituições de ensino, sendo a Escola de Teatro da UFBA um campo fértil para estes atravessamentos”.

E completam: “Sob as Tetas da Loba, com encenação do prof. Paulo Cunha, veio a dinamizar conteúdos que já vêm sendo discutidos e reflexionados dentro da Escola de Teatro, através de inquietações de discentes, docentes e técnicos lotados nesta unidade. Não se trata de julgar as escolhas da equipe do espetáculo, nem da Organização Dandara Gusmão, mas tentar iluminar o debate que carece de mais empenho no sentido de tocar, realmente, pontos necessários para o desenvolvimento e aprofundamento dos conteúdos voltados ao racismo, a misoginia, o xenofobismo e o machismo”.

Eles acrescentam, ainda, que o espetáculo estreia em meio a uma “conturbada relação de cunho étnico racial” na escola, como um “fenômeno estrutural que atravessa toda a história dessa instituição”. Fenômeno este que, nas palavras dos professores, dentro de um processo histórico que se referem como delicado, serviu para que o “conteúdo do espetáculo se deflagrasse como estopim para um acirramento de tensões e enfrentamentos que culminaram com os fatos amplamente divulgados nas mídias virtuais” - diz, em referência à manifestação e suposta agressão. 

‘Acontece no cotidiano’ Diretor da peça, Paulo Cunha não atendeu às ligações do CORREIO. O responsável por produzir o espetáculo, Victor Gonçalves, que também é aluno da instituição, afirmou, no entanto, que toda a montagem tem sua base estrutural pensada no “teatro político” que, de acordo com o ator, em suas três horas de duração, “reflete o que já mostra as situações do cotidiano”.“Paulo busca um teatro político, que é quase fotográfico. As coisas colocadas por ele, ali, acontecem no cotidiano. A partir do momento em que as pessoas são convidadas a refletir essas questões, o político está desempenhando o seu papel. A história se passa na década de 60, 70, quando famílias poderosas detém o poder, é isso. São quatro peças, encenadas simultaneamente”, explicou Victor, ao justificar o porquê de atores negros serem colocados em personagem com carga desfavorecida, com relação aos brancos. De acordo com o produtor, no dia 1º, os atores não conseguiram dar continuidade à encenação porque “ficaram bastante abalados”. Ele disse, também, que, mais de cinco atores se autodeclaram negros, dentre todo o elenco. “O pessoal do Dandara Gusmão considera que quatro são negros, mas outros se autodeclaram negros e eu não posso intervir nisso. Achamos profundamente legítimo que eles se manifestem, fazem isso desde 2012, mas invadir o palco, não. Paulo e outros professores já foram alvo do grupo”, disse, pouco antes de considerar, no entanto, que a discussão “é válida”.

Ao ser questionado sobre os critérios de viabilização de um espetáculo, Victor disse que todas as peças são colocadas em votação, onde há representação de alunos, professores e demais envolvidos na Escola de Teatro. “Dessa peça específica, não tenho detalhes de votos, mas foram cerca de 100 inscritos. Nós ficamos com 46 e, por não termos estrutura física, Paulo escolheu 30. Os 30 que fazem parte do elenco escolheram seus personagens, eles queriam fazer”. A seleção dos atores, de acordo com ele, foi iniciada em novembro.

Aluno da Escola de Teatro da Ufba, o ator Sulivã Bispo, que ganhou notoriedade pelo personagem Mainha, da websérie Na Rédea Curta, disse que ficou frustrado ao entrar na Ufba. "Já fazia parte do Bando de Teatro Olodum, eu entrei lá com régua e compasso. Foi muito doloroso, porque eu não aprendi em nenhuma aula nada que falassem de mim ou do meu povo. Um racismo gritante,  estamos na cidade mais negra fora da África, e, ainda assim, a invisibilidade do negro se mostrou cotidiana, não havendo espaço para que fôssemos representados", relata o ator, que está na Europa gravando uma série de TV. Espetáculo tinha 30 atores no elenco (Foto: Diney Araújo/Divulgação) 'Não queremos ser representados assim' Sulivã defende que atores negros são dignos de “bons papéis”. “Só quem é negro sabe o peso dessa ausência. Fiz Kaiala, que é o meu solo, onde fui indicado ao Braskem [prêmio]. Lembro que houve, inclusive, um espanto com a quantidade de negro que foi  me assistir, porque não é um espaço nosso. Essa discussão da escola de teatro não abraçar montagens negras, não nos colocar no palco para fazer bons papéis, é antiga. Acho muito triste um ator, professor, diretor, sair da escola montado os mesmos espetáculos branco-cêntricos de sempre”. Enquanto ex-aluno da escola da Ufba, o ator e diretor de arte da Companhia Nata, e diretor do Teatro da Queda, Thiago Romero acredita que o momento é oportuno para que membros da instituição debatam o assunto "sem procurar culpados". "Esse incidente aconteceu para que a escola abra a reflexão. Por muito tempo, a imagem dos pretos e pretas foi usada de forma subalternizada, esteriotipada, afirmando a imagem do que é inferior. Teatro é cultura e cultura é a história de um povo. Nós não queremos mais ser representados assim".

O diretor citou uma o espetáculo Madame Satã como um exemplo de peça onde um ator negro tem um papel de destaque, além de Afronte – Akulobee,  que discute raça e gênero, abordando temas como  racismo, homofobia,  colorismo e até questões ligadas ao vírus da AIDS. "É dar narrativas a um povo que já foi muito silenciado. É um momento que pode ser positivo, a gente tem que analisar, por mais que esteja dentro da política, tem espetáculos que não cabem mais. A gente tem que pensar e refletir nossas escolhas. Sobre essa peça específica, eu não vi, não posso afirmar que é racista, mas posso dizer que vejo uma trajetória de opressões por parte professores da escola de teatro". A grande questão, para a atriz do Bando de Teatro Olodum, Shirlei Silva, é que "não há mais espaço para tratar negritude sob a perspectiva do colonial". A atriz afirma que no teatro, e em toda sociedade, há um processo de resistência do povo negro por lugares para além dos "estereotipados".

"Quando a gente pensa em processos de mudanças, pensamos em atualização, na melhor forma e formato, para que possamos entender nossas complexidades, diversidades e diferenças. É pensar na perspectiva tanto de raça, gênero e sexualidade e que não existe indivíduos únicos. Como podemos, dentro da universidade, persistir na multiplicação de esteriótipos? Isso é uma coisa que queremos superar, levar ao enfrentamento", comentou ela, que é mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da Ufba.

"Discutir é necessário para não reforçar. Se na faculdade somos maioria de negros, como uma peça tem uma minoria negra e além disso, esteriotipada, colocada em locais subalternos?", indaga.

Shirlei afirma, contudo, que não há vergonha em ser empregada doméstica, e, sim, em não haver representação da comunidade negra em outros espaços de poder, um direito também dos negros - que já não vivem no Brasil Colônia.