Espíritos indômitos

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  • Paulo Sales

Publicado em 15 de agosto de 2022 às 05:06

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Em um trecho de A Verdade das Mentiras, Mario Vargas Llosa afirma que a literatura é “alimento de espíritos indóceis”. Ou seja: seríamos nós, os fascinados pelo delírio silencioso das letras, seres incapazes de habitar o território do conformismo ou da mediocridade. Llosa diz mais. Diz que a literatura é essencial para evitar que uma sociedade “seja condenada a se barbarizar espiritualmente e a comprometer sua liberdade”. É uma pena, portanto, que sejamos tão poucos.

Mas e se fôssemos muitos? Seria diferente? Tenho cá minhas dúvidas. Somos tão pouco afeitos a transformar o mundo, para além das nossas confortáveis trincheiras virtuais ou impressas, que não sei até que ponto conseguiríamos reproduzir na prática o que elucubramos em teoria. Qual é verdadeiramente o papel dos que se dedicam a pensar? Ou ainda: pensar é também uma forma de agir?

Esses questionamentos me vêm à tona quando penso na inocuidade das nossas boas intenções. Sinceramente, não acredito que os amantes do conhecimento sejam capazes de evitar que uma sociedade se barbarize, seja espiritualmente ou no aspecto material. Afinal, a barbárie está aí, por todo lado, a nos assombrar. Tudo isso é uma ducha fria naquela afirmação de Monteiro Lobato, para quem um país se faz com homens e livros. Infelizmente, a argamassa que deu forma à maioria das nações é constituída de homens e armas.

O próprio Llosa, do alto de sua estatura intelectual, tem se manifestado de maneira controversa quando o assunto é política. Conservador assumido e entusiasta do liberalismo econômico, ele tem apoiado a candidatura de tipos deploráveis de extrema-direita, tanto no Peru como no Brasil, com a justificativa de que seriam alternativas melhores que as candidaturas de esquerda. O conservadorismo está longe de ser um defeito, mas a defesa de políticos que flertam com a barbárie não deixa de ser um contrassenso para quem sempre prezou as liberdades individuais.

Sim, o autor de Conversa na Catedral é um ardoroso cultor da liberdade. É através dela que a aventura humana pela Terra ganha significado, ainda que impreciso, e alimentar-se de cultura é um atalho para alcançá-la. Quando imergimos na leitura e passamos a olhar retrospectivamente o mundo, conseguimos vislumbrar a trajetória de sangue e dominação que marcou os últimos dez milênios. E, consequentemente, temos melhores condições de criar empecilhos à sua repetição nos próximos dez.

Se conseguiremos é outra história. Quem sabe um dia – espíritos indômitos que somos – a nossa guerra silenciosa, feita de alumbramentos solitários, indagações ingênuas e animadas conversas de botequim, trará resultados mais alentadores que a indiferença da maioria. O fato de mergulhar em um romance clássico como A Montanha Mágica, como tenho feito nos últimos dias, não me torna necessariamente um ator preponderante na luta pela liberdade. Mas me ajuda a entender a sua importância – e isso não é pouca coisa.

Adquirir conhecimento é mais ou menos como fabricar abismos. Quanto mais ele nos envolve, mais nos sentimos na mais completa incompreensão do que nos falta conhecer. São como portas que se abrem eternamente para outras portas, e quanto mais prosseguimos, mais deixamos para trás a obscuridade, a zona de conforto da ignorância. Certezas preconcebidas são substituídas por dúvidas irremovíveis, essas coisinhas maçantes que vivem ocupando nossos cérebros com sucessivos pontos de interrogação. Afinal, a dúvida é uma das matérias-primas primordiais da evolução humana.

Às vezes, quando estou lendo, desvio os olhos das páginas e me deparo com todos aqueles volumes de aparência indevassável nas prateleiras da estante. Nelas estão os autores que amo, os que admiro sem afeto, os que me decepcionaram e aqueles por conquistar. Sei que, entre esses últimos, há livros que não vou ler nunca, assim como há outros que ainda irão me inundar de fascínio um dia. O jeito é prosseguir, embora muitas vezes vencido pelo cansaço e outras pela incompreensão.

O processo de conhecimento (e de autoconhecimento) significa se lançar contra o despenhadeiro da nossa finitude e resgatar algo de lá. Assim fazem os criadores e assim fazemos nós, os que se aprofundam nas obras desses criadores. Mas há, também, o prazer da descoberta, a deliciosa sensação de que algo valoroso e único se descortina para nós, como um segredo muito antigo ou uma visão, ainda que fugaz, do paraíso. Só isso já vale as dúvidas, os questionamentos e a solidão.