Esse universo sagrado que nos guarda

É preciso fechar ciclos e traçar círculos para se reconciliar com o passado

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  • Kátia Borges

Publicado em 1 de maio de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Antes que o passado fechasse o círculo mágico, cada um de nós teria que confessar um segredo a desconhecidos. O ritual representava a confiança no Universo, que cuidaria de nós a partir daquela data e no futuro. Eu, que nem sabia em qual dia estávamos, desnorteada pelo sossego, lembrei que 33 simboliza o retiro no I Ching. 

À medida em que as linhas avançam dentro do hexagrama e vão mudando, até alcançar o ponto mais alto, ocorre um fenômeno interno no zênite. Tudo aquilo que nos prende, até o poder supremo da palavra, liberta-se, a mutação transcende o apego. Então a retirada amorosa acontece, plena, saudável, primeiro passo para o retorno.

Enquanto todos já desabavam em mistérios, respirei fundo e olhei as estrelas, que pareciam fundar novo país no céu de janeiro. Ganhava tempo para inventar um segredo, antes que a roda alcançasse meu corpo, ciente de guardar o que era dentro do peito com tanta força que, se algo fosse dito, forjaria uma explosão de supernovas. 

Dizem que é assim que se forja ouro no espaço. Também em mim, o metal precioso. O que poderia confessar, enfim, devassa que devastaria o cofre blindado. Além de resistir a pé de cabra, marreta, maçarico, furadeira e macaco hidráulico, resiste a até 4 horas de fogo em um incêndio de 800°C — diz o anúncio do modelo mais seguro.  Talvez confessar que escrevo, sina, paixão, tesouro. Mas como pisar solo tão sagrado sem macular o que é o templo e seu culto? Um romance obscuro que jamais se converterá em clássico, título empoeirado nas estantes de um sebo. Ah, esse livro nunca lido, autógrafo perdido de seu dono, miolo indefinido, páginas soltas reinventando enredos. 

Talvez confessar um pecado imperdoável e ainda assim inocente — por descuido, tanto de beatitude se perde no cotidiano. Agora mesmo esse silêncio, o vento suave daquela noite de janeiro no círculo mágico do passado. A impressão de que o Universo que nos guardaria, a partir daquela data e no futuro, ainda acaricia os cabelos.

*Kátia Borges é escritora e jornalista