Eu sinto medo na longa estrada

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  • Paulo Sales

Publicado em 28 de março de 2022 às 05:07

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Ferreira Gullar certa vez escreveu que “não há soluço maior que despedir-se da vida”. Já Alain Delon planeja despedir-se dela em breve. Aos 86 anos, o ator francês é sobrevivente de um AVC, mas viu a mulher morrer de um câncer no pâncreas, provavelmente uma experiência traumática pela qual não deseja passar. Ele pretende recorrer à eutanásia quando chegar a hora que julgar adequada.

Delon mora na Suíça, onde a eutanásia é permitida. “A partir de certa idade, de um determinado momento, temos o direito de dar o fora com calma, sem passar por hospitais, injeções ou coisas assim”, afirmou numa entrevista. É justo. Foi um dos atores mais bonitos da história do cinema e na tela deu vida ao jovem proletário de Rocco e Seus Irmãos e ao aristocrata arrivista de O Leopardo, ambos de Luchino Visconti, entre tantos papéis clássicos.

Mudo de assunto: hoje lembrei de um caso triste da infância. Eu tinha um azulão ainda filhote engaiolado na casa onde morávamos. Uma noite, um gato conseguiu abrir o viveiro e comeu o azulão. No outro dia, quando fui olhar, só havia restado a cabeça do animal. Diminuta, com os olhos entreabertos e a parte seccionada mostrando o interior vermelho vivo. Chorei muito nesse dia observando a cabecinha do passarinho, até que a joguei no quintal.

É possível que tenha sido o meu primeiro contato direto com a morte. Antes minha avó morrera, mas dela guardo só a lembrança da sua presença na casa – uma cama de ferro, dessas de hospital – e da imagem que minha mente construiu quando minha mãe disse que ela tinha ido para um jardim florido. Criei outros passarinhos na infância, dos quais o meu preferido era uma cuiubinha. Cantava para ela depois do almoço e ela fechava os olhos, provavelmente de raiva e enfado.

Outro foi um cardeal. Era lindo, com a cabeça vermelha, o corpo branco e as asas matizadas de preto. Um dia ele morreu, enquanto eu estava na escola. Minha mãe, com sua abnegação, saiu para procurar outro antes que eu desse por falta. Ela precisou ir até a casa de uma pessoa que criava pássaros, num lugar bem distante, e enfim achou o cardeal substituto. Só fui saber disso muito tempo depois, já adolescente. Minha mãe me preservou de uma nova perda.

Certa vez, nas minhas travessuras, botei a mão dentro do viveiro e um periquito conseguiu escapar. Voou rápido para longe. Eles não gostavam de nós. Éramos carcereiros sem dó, embora não me desse conta disso à época. Hoje me arrependo muito e deploro animais engaiolados. Seja um canário num alçapão ou um tigre no Zoológico. O último passarinho que tive, um coleirinha, morreu nas minhas mãos, provavelmente intoxicado pelo cheiro de tinta da parede do apartamento para onde tínhamos acabado de mudar. Eu o enterrei no jardim.

Mudo de novo de assunto (ou talvez sejam só variações sobre o mesmo tema): esta noite fui assolado pela insônia. Um território por vezes inóspito, no qual empreendemos longas jornadas rumo ao passado. Lembrei de uma garota de Jundiaí que conheci na juventude. Ela me apresentou aos seguintes versos: “Quebrei meus pensamentos / E andei descalça sobre eles / Feri meus pés”. Não lembro se os versos eram dela ou de uma amiga, só sei que gostava muito deles. A garota se foi sem deixar vestígios, a lembrança do rosto dela também. Os versos ficaram.

Nessas noites em claro, os pensamentos costumam nos ferir como nos versos da garota, só que provocando pequenas incisões no nosso córtex cerebral, e não nos pés. Temo que o meu córtex esteja tomado por cicatrizes como o braço de um viciado em heroína. A madrugada insone também me fez remoer um fato recente: um antigo colega de escola que esta semana perdeu o filho, adolescente ainda. Mais cedo, tinha visto fotos dos dois em uma rede social e lido o depoimento devastador do pai. Aquilo me deixou mal.

Eu sinto medo nessa longa estrada. Um medo estranho e inexplicável. Por vezes irrompe de repente, outras hiberna. Medo da dor, da velhice, das perdas, da extinção. Talvez eu seja ainda aquele garoto tímido e gordinho às voltas com a cabeça do azulão, incapaz de compreender os mecanismos brutais que fazem a natureza avançar. Ou talvez esteja esboçando para mim mesmo, ainda que involuntariamente, o que para Alain Delon já parece tão claro: a partir de determinado momento, temos o direito de dar o fora com calma. Só espero que o momento não chegue tão cedo