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João Gabriel Galdea
Publicado em 28 de maio de 2023 às 05:01
Uma cerveja antes do almoço é muito boa pra ficar pensando sobre como surgiu, em Salvador e região, a tradição de degustar a denominada comida baiana às sextas-feiras. Para quem não sabe, por não ser daqui ou não prestar atenção, quase 100% dos restaurantes da capital, nesse dia, serve algo com azeite de dendê, prática também comum em muitas residências. Mas por quê?>
Após uma busca por respostas plausíveis que durou semanas, encontrei um ensaio de explicação numa relíquia perdida na Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Ondina. Com o autoexplicativo título ‘Os Sete Dias da Cosinha Bahiana’, o folheto de cinco páginas, lançado em 1956, indica que grande parte das famílias seguia uma certa agenda culinária, tendo um rango específico para cada dia da semana.>
“Toda segunda-feira, o prato escolhido é a quiabada; na terça-feira, o prato preparado é o cozido; na quarta-feira, o prato determinado é o feijão de leite com bacalhau; na quinta-feira, o prato indicado é a feijoada; na sexta-feira, o prato ritual é o peixe [com o dendê facultativo]; no sábado, o prato consumido é a frigideira e aos domingos o prato servido é a galinha”, escreve um tal Francisco Gomes de Oliveira Neto na publicação que faz parte da coleção Estudos Bahianos.>
Nada mudou >
Antes de registrar os hábitos gastronômicos do dia a dia das famílias – o livreto pondera que havia uma “adaptação” que variava de acordo “com o grau do meio social” –, Chico traz um quinhão da autoavaliação que a elite econômica local tinha em meados do século passado, com perspectiva distante de problematizar o período escravista.>
“A família baiana, a mais ilustre e brasonada do Brasil, deixou nome em todos os setores das atividades sociais. (...) Famílias patriarcais, nobremente instaladas nos solares, tiveram fama nos séculos já decorridos e seus descendentes ainda rememoram o passado austero e aristocrata, não só da estirpe dos grandes titulares da Valorosa Cidade do Salvador, como da plêiade de senhores de engenhos do recôncavo”, escreve.>
Apesar disso, não deixa de referenciar que “a genuína comida baiana tem sua origem no cardápio africano, com intromissões de pratos da culinária europeia”, e ainda menciona, junto aos santos católicos, os orixás correspondentes a cada dia e comida [leia comentários e receitas transcritos no final]. >
Chama a atenção também o trecho em que afirma conservar-se “inalterável a cozinha baiana, cujo sabor dos seus pratos até hoje têm renome em todo o país.”“Comeu-se e ainda come-se muito bem na Bahia. (...) Mas, carece que se diga e fique bastante esclarecido, o que se serve na mesa baiana não está terrivelmente adubado de condimentos picantes ou encharcados de azeites variados”, adverte o escritor sobre algum boato externo do tempo de Dom Corno.>
Tudo mudou >
Mas se “nada mudou” durante décadas até 1956, por que quase 70 anos depois há tanta diferença? Segundo o antropólogo Ericivaldo Veiga, professor aposentado da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), parte do reforço dessas tradições partia de intelectuais que buscavam expressar uma identidade particular à Bahia.>
“Dorival Caymmi e Jorge Amado – depois João Ubaldo com a moqueca de baiacu – oferecem receitas didáticas de como preparar vatapá. Assim, comidas de azeite da cozinha baiana são divulgadas a nível nacional, e pratos como acarajé, vatapá, bobó de camarão se juntam à rainha feijoada como símbolos identitários da cultura nacional”, pontua o professor, antes de citar outro aspecto que ia na mesma toada.>
"Tentou-se institucionalizar o hábito de se vestir nas cores simbólicas de cada orixá, a cada dia da semana: na terça-feira a roupa era azul por ser o dia dedicado a Ogum; sexta-feira, dia de Oxalá, a roupa é branca, e por aí vai... Mas tanto a tradição de uma comida para cada dia da semana como a cor da roupa parece não ter sido incorporada o suficiente para tornar-se um traço identitário duradouro”, ou seja, foi quase tudo sumindo, sobrando a sexta-feira com a roupa e o rango e, em dias variados, a feijoada e o cozido.>
Mas o que provocou essa perda gradual? “Várias situações: as condições financeiras das famílias não permitiam tanta rotatividade de pratos na mesa popular; as mudanças de hábitos alimentares com a presença de alimentos industrializados no mercado já modifica os modos de se produzir o alimento, especialmente quando se lida com uma cozinha de produção tradicional como foi a cozinha afro-baiana na sua origem sociocultural”, sugere Ericivaldo Veiga. >
Digestão >
Para o pesquisador Milton Moura, professor de História na Ufba, é possível compreender a manutenção da comida baiana às sextas e, o que também é comum, a feijoada nos finais de semana, sob a perspectiva laboral.>
“Talvez isso tenha ocorrido por ser a sexta já o começo do fim de semana. E não se costuma fazer comida de azeite em poucas quantidades, para pouca gente. A tradição da feijoada nos fins de semana se deve ao tempo de preparo dessa comida, bem como às exigências da digestão. É uma comida gordurosa. A feijoada completa, com uma quantidade considerável de gordura animal, sobretudo suína, é pouco compatível com o trabalho logo após, sobretudo o trabalho mental, intelectual. Sentar diante do computador depois de um prato generoso de feijoada não funciona”, analisa.>
Sobre a influência religiosa no rango de sexta, parece estar pautada apenas na tradição católica de evitar carne neste dia. Nada a ver com o candomblé.>
“Não está relacionado a Oxalá, cujos filhos não comem dendê nesse dia. (...) E não se prepara e consome comida de azeite como uma afronta aos preceitos do orixá. É um hábito, um costume, simples assim. Quem tem preceito ou interdito – quizila, na linguagem do candomblé – pode estar nesse ambiente, mas não consome comida de azeite. É sinal de delicadeza, atenção e respeito preparar uma comida sem azeite para essas pessoas filhas de Oxaguiã ou Oxalufã”, conclui Moura.>
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Confira a transcrição das receitas (em português atualizado) e comentários sobre os pratos que compunham ‘Os Sete Dias da Cosinha Bahiana’ há sete décadas. [Destaques para os comentários sobre a feijoada carioca, que o autor sugere nem existir naquela época, e o sábado como dia oficial da faxina]. >
Segunda-feira: que o vulto chama "Dia de Branco" porque é aquele que o patrão determina, ordena e manda no trabalho ou no rito afro-brasileiro, "Dia de Omolu", que corresponde a São Lázaro; o prato adotado é a quiabada. Os nossos livros de culinária, os mais lidos não se reportam a confecção de apetitosa comida, assim, in D. Benta a sua autora não se refere ao preparo dela, e J. Vianna, no Caderno de Xangô, indica uma maneira errônea de fazê-la. A quiabada, como o nome está dizendo, tem por base o quiabo que é cortado em rodelas e depois em cruz; põe-se carne de boi que também é cortada em pedacinhos, porque tem de ser misturada com o quiabo. Temperos comuns, porém grande quantidade de limão para cortar a baba do quiabo. A quiabada é acompanhada de angu, que se serve quente. Molho de pimenta verde. >
Terça-feira: dia de Santo Antônio ou de Ogum; é servido o cozido composto de dois pratos; um para as carnes e outro para as verduras. O primeiro contém carne de porco fresca (boi) e charque (carne de sertão), linguiça e toucinho; no segundo estão dispostas as verduras: abóbora, quiabo, maxixe, jiló, couve, repolho, chuchu, banana da terra, batata doce, aipim. Em uma terrina está o pirão de farinha com caldo do cozido com tempero. O molho é o comum, isto é, pimenta, limão, cebola, alho, um pouco de sal e água quente. >
Quarta-feira: dia de São Jerônimo ou Xangô. O prato indicado é o feijão de leite de coco e bacalhau confeccionado com esmero. O feijão escolhido é o preto. Após ter cozinhado o feijão passa-se o mesmo na máquina, separa-se em seguida a casca na escumadeira, depois põe-se o leite de coco e o açúcar e leva-se o alimento ao fogo. O preparo do bacalhau procede-se da maneira vulgar; para o acompanhamento do feijão, faz-se com o bacalhau um ensopado. Serve-se com arroz branco. >
Quinta-feira: dia de S. Miguel ou Oxóssi e o prato predileto é a feijoada que se encontra em casa de todas as classes sociais. A feijoada baiana difere da mineira e da pernambucana; no Rio de Janeiro e nos estados do Sul não se conhece a feijoada propriamente dita, apesar de se consumir o feijão em larga escala. O feijão empregado para o prato é conhecido pelo nome de "mulatinho". As carnes que compõem a feijoada são: carne verde (de boi), de porco, carne de salsa e o toucinho. De referência aos condimentos, entram na combinação o sal de cozinha, alho, cebola, hortelã, cominho e vinagre. Para acompanhamento: arroz branco e farinha cessada; o molho de pimentas maduras. É uso comer a feijoada com banana de prata e após a refeição chupar uma laranja para facilitar a digestão. >
Sexta-feira: dia de Nosso Senhor do Bonfim ou Oxalá, dia de guarda porque não se come carne de boi; segue-se o princípio religioso; abstenção completa. Serve-se então o peixe que pode ser apresentado à mesa frito, de escabeche, ensopado e de moqueca. O peixe frito e o ensopado come-se com arroz branco, acompanhado de batatas, chuchu, maxixe e às vezes jiló, segundo o gosto da casa. À maneira escabeche, mais fina, lança-se mão do arroz branco e ervilhas; a moqueca com farofa d'água fria ou com azeite de dendê. >
Sábado: dia de Nossa Senhora da Conceição ou Iemanjá - é o escolhido para o asseio da casa. Diz-se que após a limpeza do lar, em horas de sossego, Nossa Senhora vem visitá-lo para verificar se de fato os cômodos estão varridos e tudo se encontra em seus devidos lugares para depois lançar a sua bênção. No sábado é que se distribui óbulos aos pobres, daí o ditado: "Esmolas, só em dia de sábado". Neste dia é que a patroa faz a dispensa para a semana, é o abastecimento que se refaz, os principais gêneros alimentícios que se compra de conformidade com a necessidade da cozinha. O prato do dia é a frigideira que varia, pois pode ser de carne de boi ou de porco, de camarões, caranguejos, bacalhau, de andu com linguiça, cebolas e azeitonas, coberta de gema de ovos. >
Domingo: dia de São Domingos ou de Oxaguian; o prato é a galinha, que pode ser preparada de variadas maneiras como assada, ensopada, de molho pardo e de xinxim. O arroz que acompanha o prato pode ser branco ou corado; é facultado o uso da farinha e da pimenta. Famílias há que no domingo dão almoço "ajantarado", isto é, uma refeição lauta, porém única feita neste dia; assim termina os Sete Dias da Cozinha Baiana. >
*Agradecimento especial a Dona Maria Alice e a Glauber Moreira, que encontraram o folheto-relíquia no Memorial da Ufba.>