Fernando Granato: ‘O século 19 foi uma época de lutas na Bahia’

Jornalista reúne em livro histórias das rebeliões negras de Salvador; leia entrevista

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  • Da Redação

Publicado em 21 de novembro de 2021 às 09:48

- Atualizado há um ano

. Crédito: Renata Parada/Divulgação

Quando se pensa no povo negro sob uma perspectiva histórica, as primeiras imagens que vêm à cabeça são cenas de sofrimento e humilhação: levando chibatadas, amontoados em navios negreiros, abanando seus senhores em dias de sol escaldante. É isso o que nos ensinam na escola. Pouco se fala sobre a história de luta desse povo, que, ao longo dos tempos, tem resistido, a despeito das condições às quais é submetido desde sua chegada ao Brasil. Entre 1550 e 1855, entraram no país 4 milhões de pessoas escravizadas. O livro ‘Bahia de Todos os Negros - As Rebeliões Escravas do século XIX’ (Selo História Real, Editora Intrínseca), do jornalista Fernando Granato, joga luz sobre os africanos que foram trazidos para a Bahia. Por aqui, entre 1820 e 1835, 57,3% dos escravizados vinham do Golfo do Benin. 

Estes homens e mulheres eram de briga. Não aceitavam com passividade a situação subumana em que viviam, sujeitos a todo tipo de violência imposta pelo regime escravagista da Coroa Portuguesa. Chamados de “os filhos de Alá na Bahia”, seus antepassados tinham origem nagô, eram seguidores da religião muçulmana e muitos sabiam ler e escrever. O comportamento de insubordinação foi desenvolvido durante os conflitos entre etnias na África, em lutas internas. Eles usariam a prática belicosa para planejar insurreições em território brasileiro, principalmente baiano. Não é coincidência que, com a chegada desses africanos, houve um aumento na ocorrência de levantes, que culminaram na Revolta dos Malês, em 1835. 

Esse é considerado o maior motim de escravizados no Brasil e, entre seus participantes estaria Luiza Mahin, mas a própria existência da personagem ainda é motivo de controvérsia entre historiadores. Ela teria repassado ordens e instruções dos líderes rebeldes aos dirigentes das mesquitas da cidade. À Luiza também é atribuída a fundação da Irmandade da Boa Morte, criada como resistência no século XIX, mas não existem documentos sobre essa participação e sim uma tradição oral repassada entre as integrantes mais antigas da irmandade. Constituída apenas por mulheres negras, a Boa Morte é tida como um dos primeiros movimentos feministas negros do país. Luiza Mahin seria ainda a mãe de Luiz Gama, como ele relata em carta autobiográfica. Fugindo das consequências impostas após a Revolta dos Malês, ela não conseguiu ver o filho libertar mais de 500 homens e mulheres escravizados, tornando-se, assim, uma das maiores personalidades negras da História do Brasil.  

“Seu enterro em São Paulo foi uma coisa épica. Segundo depoimento de seu amigo, o escritor Raul Pompeia, 10% da população da cidade, que contava com 40 mil habitantes, compareceram. Todos reivindicavam o direito de carregar, ao menos por alguns instantes, aquele caixão”, conta Fernando Granato, nesta entrevista ao CORREIO. Luiz Gama acaba de receber o título de doutor honoris causa pela Universidade de São Paulo (USP). É esta a história do povo negro, com seus heróis e heroínas, que precisa ser contada. Leia a entrevista:  Em 'Bahia de Todos os Negros - As Rebeliões Escravas do Século XIX' você aborda a relação entre os negros que vieram da Costa da Mina - região dos atuais estados de Nigéria, Gana, Benin e Togo - e os conflitos ocorridos na Bahia. Por que os escravizados que vieram dessa parte do continente africano eram mais combativos?

Pesquisadores como Nina Rodrigues e Luiz Vianna Filho já apontaram em suas obras a relação profunda entre a chegada dos africanos da Costa da Mina à Bahia e o aumento na temperatura e nas insurgências escravas em solo baiano. Uma das principais razões para isso era o fato desses africanos serem já muito experimentados em guerras e conflitos internos entre etnias na África. Transcrevo no meu livro uma declaração do Conde da Ponte, que governou a Bahia de 1805 a 1809, segundo o qual os africanos que chegaram da Costa da Mina colocavam em risco a paz do sistema escravista. Isso porque pertenciam a “nações as mais guerreiras da Costa Leste africana”.

Por que a maior parte dos escravizados da Costa da Mina veio para a Bahia?

Por uma razão muito peculiar: era a única região da África que aceitava o fumo de terceira qualidade produzido na Bahia e que sobrava como refugo porque era rejeitado por Portugal. Descobriu-se que essa região africana aceitava receber esse fumo em troca de escravos e não pararam mais de chegar negros da Costa da Mina na Bahia.

Muitos dos negros que vinham desta região da África sabiam ler e tinham o Islã como religião. De que forma isso foi vantajoso para a organização dos conflitos? 

Esse foi um caráter primordial tanto na organização como na motivação dos levantes. No que diz respeito à motivação, a religião figurava como uma das principais razões. Esses africanos se negavam a ser batizados na doutrina católica, como era prática, e lutavam para manter as suas tradições religiosas. Havia mesquitas clandestinas espalhadas por Salvador e muitas delas serviram de células de conspiração para os levantes. Ali também se ensinava a ler e escrever em árabe aos que não sabiam. E a alfabetização ajudou muito no poder de comunicação entre esses africanos conspiradores. O curioso é que muitos deles sabiam ler e escrever e às vezes eram mais alfabetizados que seus senhores.

Além da Revolta dos Malês e da Sabinada, você cita outros levantes realizados em Salvador e no Recôncavo. Quais destacaria como também importantes na luta antiescravista?

O século 19 foi uma época de lutas na Bahia. Tanto insurreições escravas como movimentos separatistas e antilusitanos. Entre as rebeliões escravas, além da Revolta dos Malês, destaca-se a batalha ocorrida em 1814, numa propriedade pesqueira de Itapuã. Esse levante chamou a atenção das autoridades pelo alto grau de violência empregada: não eram comuns os ataques a crianças e, daquela vez, não foram poupadas duas meninas que tentaram se refugiar junto à mãe, uma parda de nome Marcelina, casada com o feitor. Outro levante importante aconteceu em 1826, com escravos que se refugiavam nas imediações de Salvador, no chamado Quilombo do Urubu. Nesse embate se sobressaiu a figura de uma negra chamada Zeferina, que teria enfrentado as forças policiais com um arco e flecha nas mãos e entrado para o rol das heroínas brasileiras por sua bravura.

No livro, é curioso saber que mulheres foram delatoras de alguns dos motins ocorridos na Bahia. A Revolta dos Malês foi frustrada depois que uma escrava liberta bateu com a língua nos dentes. Por favor, fale mais sobre isso. 

Isso era muito comum. Grande parte das tentativas de insurreições foi frustrada por delação. No caso da Revolta dos Malês, ela foi delatada por uma escrava liberta que soube da conspiração pelo marido, que ficara sabendo da organização de um movimento em curso. A notícia do levante foi depois confirmada a essa mesma liberta por uma amiga, que vira o marido junto com negros de Santo Amaro que se reuniam para deflagrar um levante. Aí ela procurou as autoridades e denunciou.

Para a produção do livro, você teve acesso a documentos originais? 

Para sorte dos pesquisadores, toda a documentação da devassa da Justiça contra a Revolta dos Malês se encontra no Arquivo Público da Bahia e foi editada em livro para facilitar a consulta.

Por que a documentação sobre a Revolta dos Malês é farta e existem alguns levantes que quase não encontramos registros, como a Insurreição Esquecida?

A Revolta dos Malês foi o maior levante escravo urbano ocorrido no Brasil. Exatamente por isso foi também a que recebeu a maior reação por parte das autoridades, para que servisse de exemplo a outros possíveis levantes. A Justiça foi implacável e essa reação gerou farta documentação. No caso da chamada Insurreição Esquecida, a que você se refere, ela foi tramada em 1844, novamente em Salvador e igualmente delatada antes mesmo de acontecer. Essa tentativa de levante passou quase despercebida pelos historiadores ao longo de décadas. Foi levantada pelo historiador Clovis Moura, já no século 20 e praticamente não há registros sobre ela.

No geral, quais foram as consequências para os negros - escravizados e libertos - após a realização de todas as rebeliões citadas no livro? 

As consequências foram as piores possíveis. Estabeleceu-se uma perseguição implacável. Todo tipo de congregação de negros era proibida e reprimida. Aí entram as manifestações religiosas, culturais e até mesmo de lazer. Os envolvidos nos levantes que foram presos em sua maioria receberam penas de açoites e trabalhos forçados, quando escravos. Aos libertos, a deportação para a África era a pena mais comum. A pena de morte não era muito usada, no caso dos escravizados, porque causaria prejuízo aos seus senhores.

Os países da Europa aboliram a escravidão no início do século XIX. Por que no Brasil demorou tanto para que isso acontecesse, mesmo com a lei assinada em 1831, que proibia o tráfico negreiro, e mesmo com o grande número de levantes realizados, sobretudo na Bahia?

A engrenagem escravista era movida por vários segmentos da sociedade. Desde pequenos comerciantes até os mais altos escalões lucravam com ela. Até mesmo a Igreja Católica fazia vista grossa para a barbárie da escravidão porque lucrava com ela. Diante disso, era mais fácil para os governantes fingir que não viam o intenso tráfico clandestino de escravos mesmo depois das leis que tentaram, na aparência, acabar com ele. A lei que você se refere, de 1831, serviu apenas para dar uma satisfação à Inglaterra, que nessa época condenava o tráfico de escravos. Por isso ganhou logo o apelido de “Lei para Inglês Ver”.

Estamos vivendo uma pandemia de covid que tem os negros como maioria das vítimas. Mas a Bahia, ainda no período monárquico, passou por duas epidemias, de febre amarela e de cólera, que mataram muitas pessoas, a maioria, também negros. Como era o cenário da época e o que mudou desde então?

As camadas menos favorecidas continuam a sofrer mais nas crises sanitárias. Foi assim e continua sendo. Nas grandes epidemias do período monárquico houve ainda um ingrediente perverso que recaiu sobre os negros: a elite os acusava de criadores de focos epidêmicos pela suposta falta de higiene em suas moradias e nos navios negreiros que os traziam da África. Esse ingrediente perverso foi ainda motivo de intensificação das perseguições a essa camada da população. Com pretextos higienistas, autoridades invadiam as moradias em busca de focos de contaminação e mais essa pecha recaiu sobre os negros.

Os negros têm um lugar de destaque e de luta na nossa História. No entanto, eles são retratados como “escravos”, como se tivessem vindo ao Brasil de livre e espontânea vontade para viverem em condições subumanas. Por que esse protagonismo é negligenciado nos livros didáticos e no ensino de forma geral?

A história do Brasil sempre foi contada pela perspectiva do branco colonizador. O racismo é um mal enraizado na nossa sociedade de tal forma, que às vezes nem nos damos conta do quanto ele está por trás de tudo. No meu livro conto um pouco do trabalho sistemático que se fez no Brasil para manter o negro a margem da sociedade no pós-abolição, em todos os aspectos, não só o econômico. Na educação, isso foi gritante. E por conta desse analfabetismo forçado, o negro ficou também por muito tempo a margem do processo político e das transformações. Para se ter uma ideia, os chamados iletrados só depositariam o voto na urna em novembro de 1985, na primeira eleição após a ditadura militar brasileira.

Um dos grandes protagonistas da nossa História e do seu livro é Luiz Gama, que nasceu livre e foi vendido pelo pai para ser escravizado, tendo aprendido a ler e frequentado a Faculdade de Direito. Gama não se formou, devido ao preconceito na Academia, mas atuou como advogado, libertando mais de 500 negros escravizados. Sua trajetória é uma das mais impressionantes já vistas. Ele não merecia um reconhecimento maior, inclusive na Bahia?  

Com toda certeza digo que sim. Gama foi uma das personalidades mais importantes e influentes do século 19. Seu enterro em São Paulo foi uma coisa épica. Segundo depoimento de seu amigo, o escritor Raul Pompeia, 10% da população da cidade, que contava com 40 mil habitantes, compareceram. Todos reivindicavam o direito de carregar, ao menos por alguns instantes, aquele caixão. Depois ele acabou caindo no esquecimento. O que restou foi um busto instalado no Largo do Arouche, centro de São Paulo. Agora, vem sendo recuperado e falado novamente.

Luíza Mahin, que Luiz Gama afirmou ser sua mãe, também tem uma trajetória muito importante nos movimentos contra o sistema escravista na Bahia e, por conseguinte, no Brasil. Qual foi a sua atuação nestes levantes?

Luíza Mahin é um caso curioso porque não existe documentação alguma sobre ela. O que se tem é a carta biográfica escrita por Luiz Gama no final de sua vida, em 1881, na qual ele conta ser filho de uma africana liberta, da Costa da Mina, que tomou parte nas tentativas de insurreições escravas da Bahia no século 19 e depois acabou fugindo para nunca mais voltar. E os relatos orais das pessoas que contam a sua vida e passam suas histórias de geração para geração.

Ela, inclusive, é apontada como fundadora da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, instituição tida como um dos primeiros movimentos feministas negros do país. De que forma a Irmandade agia diante dos inúmeros problemas enfrentados pelo povo escravizado?

É verdade. Essa instituição, que existe até hoje, tem irmãs que trazem relatos de suas avós, bisavós, tataravós, segundo os quais Luíza Mahin teria sido uma das fundadoras da instituição, depois que fugiu de Salvador pela repressão aos sucessivos levantes. Essa instituição, além do caráter religioso, tinha o caráter de assegurar uma rede de solidariedade e apoio aos escravizados.

Antigamente, apesar das punições severas as quais as pessoas eram submetidas quando iam contra as ordens da Monarquia, parecia existir uma capacidade de mobilização maior. A seu ver, por que hoje em dia, mesmo em tempos difíceis como estes que estamos passando, o brasileiro pouco se manifesta?

 É comum que nas grandes crises aflorem as manifestações contrárias ao regime opressor com mais intensidade. Isso aconteceu também, por exemplo, durante a recente ditadura militar pela qual passou o Brasil. Creio que hoje estamos num período de certa estagnação e apatia diante do momento tão desanimador. Minha esperança é a de que isso se reverta em breve.

Para desenvolver o livro você veio a Salvador e realizou o percurso da Revolta dos Malês. O que mais chamou sua atenção durante o trajeto?

O que mais me chamou a atenção foi este cenário estar preservado. Está tudo ali. No pé da Ladeira da Praça está o lugar onde começou a revolta. A alguns metros dali, a casa onde nasceu Luiz Gama e morava Luiza Mahin, na Rua do Bângala. Subindo a Ladeira da Praça, o prédio da Câmara, onde ficava também a cadeia. Na frente, a Praça Tomé de Souza, onde se deu a primeira grande batalha. E assim por diante, até Água de Meninos, onde ocorreu o último embate.

Podemos dizer que, dos tempos do Império para cá, pouca coisa mudou para o negro, do ponto de vista social, na Bahia e no Brasil?

Penso que o que vivemos hoje, um quadro dramático de desigualdade, tem a sua gênese no período narrado em meu livro. O negro foi jogado na sociedade de forma marginalizada depois da abolição e lá permaneceu. Quando vejo o extermínio de jovens negros nas periferias das cidades penso que não há um assunto mais emergente a ser tratado do que esse. Recente estudo da Unicef revela que 35 mil crianças e jovens foram assassinados no Brasil nos últimos cinco anos. Desse total, 80% eram negros.

Publicações com a temática da escravidão têm sido lançadas por diversas editoras. Acredita que este é um bom sinal? Finalmente trataremos do tema com o destaque que ele deve ter?

Sim é um ótimo sinal. Os movimentos “Vidas Negras Importam” ganham cada vez mais as ruas e vejo nas pessoas um anseio em conhecer o embrião dessa problemática. Por isso que resolvi escrever meu livro.

Sendo um homem branco, acha que é importante abordar temas relacionados ao povo negro?

Acho que o importante é que se levante esse assunto. O grande bispo emérito de Olinda, dom Helder Câmara, dizia que a questão do negro se liga a todos os grandes problemas da humanidade e eu concordo com isso. Para mim, não existe assunto mais emergente do que esse na nossa atualidade.