Festa de Oxumarê: Renovação da fé e da devoção ao Arco-Íris

CORREIO acompanha belo ritual da festa que acontece há 183 anos no Terreiro de Oxumarê

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  • Fernanda Santana

Publicado em 18 de agosto de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr.

Os clarins anunciam a chegada dos reis e rainhas. Quando o primeiro atabaque vibra, tocado por ogãs, o universo se expande. O primeiro reverenciado é Exu, o mensageiro da terra, aquele que vai na frente de tudo. Logo mais chegará Oxumarê, o Arco-Íris, por quem o Terreiro de Oxumarê se une para um dia de reverências. Há 183 anos, sempre no terceiro sábado de agosto, todos despertam antes do sol.

As portas azuis do Terreiro Ilé Osùmare Àrakà Àse Ògòdò, na Federação,  estão abertas já às 4h30. Na Praça Obítèdó, em frente ao barracão, ogãs serão responsáveis por despertar os orixás e toda a Casa.“São as grandes trombetas para anunciar a chegada dos reis e rainhas, os orixás, no contexto da África”, diz Augusto Reis, do Ile Axé Omin Odê Oxé. A festa, que começou na madrugada de sábado, reverencia o orixá do Arco-Íris, que brindou os presentes com sua presença (Foto: Fernanda Santana) Na noite anterior, em média 250 pessoas dormiram na Casa de Oxumarê e também acordaram  ao toque das trombetas. É o início da alvorada, primeira etapa de celebrações do terreiro.

Depois dos clarins, fogos de artifício explodem no céu. Cada orixá recebe seu próprio toque. Os homens que tocam são escolhidos pelos deuses e se posicionam um à direita e outro à esquerda do lado de fora barracão. Lá dentro, três alabês começam a tocar os atabaques.  “É o som emitido ao mundo”, define o paulista Thales Henrique de Melo, neto de santo do terreiro. Antes do sol nascer, começa a chuva. E água é sinal de purificação no candomblé, uma benção para o dia começar.

Os filhos da Casa e de outras ramificações espalhadas pelo Brasil e até por outros países já estão prontos para o dia. O tema da festa é a ecologia. A manutenção da natureza significa vida para os orixás, que são as próprias forças e elementos da natureza.“Oxóssi está na florestas. Imagine se as florestas não existirem mais. Encontraremos Oxossi? Nosso grande pai Xangô manda que todos nós temos que respeitar a natureza. Todos nós reverenciamos a terra e batemos nossa cabeça no chão”, diz Bàbá Pecê , babalorixá do terreiro.O terreiro já pede a substituição, nas oferendas, do prato pela folha, da garrafa pela cabaça. Precisam respeitar a natureza, pois só assim podem espeitar o orixá.

O local estava tomado de branco, pescoços com cascatas de guias e bubus na cabeça. Os iniciados há mais de sete anos vestem colorido. Às 5h40, tem início o adarrum, rito invocatório dos santos de cada cabeça feita. A reportagem é convidada a observar, sem registrar o momento. À saída, encontram o arco-íris pintando o céu.

“Todo ano, depois do despertar da casa, isso acontece. É algo mágico. Não tem como não acreditar”, diz, emocionado, o  babaebé Leandro, que há 20 anos vê o ritual se repetir, num sinal de que Oxumarê vive e está presente.   Pela manhã foi servido um farto café para os fiés que vieram de terreiros de vários estados e até do exterior (Fotto: Betto Jr.) De todos os cantos

É hora de arrumar o terreiro para mais uma etapa. As cadeiras são colocadas em frente ao barracão para 18 yabás, mulheres com mais de 50 anos, anciãs do terreiro. Todos, inclusive as crianças, fazem filar para pedir bênção. “Sempre tem uma coisa pra arrumar, coisas para Oxumarê, coisas internas”, avisa a ekede de Omolu Iara Freitas. No centro, está Bàbà Pecê, Olori Egbé.

O hino nacional é cantado e tocado às 9h, no ritmo dos atabaques e agogôs, enquanto as bandeiras são hasteadas por cinco crianças. Depois, é a vez do  Oxumarê Araká, hino da Casa. Os irmãos dançam para os orixás. Logo depois, é a hora de rojões.

Rapidamente, filhos de santo surgem com mesas e cadeiras, guardadas no quarto grande, e começam a arrumação do café da manhã.“É a hora da comunhão, aqui está Oxumarê recebendo todo mundo”, explica ogã da Casa Branca e Olopitan do Oxumarê, Ordep Serra. As mesas formam uma borda infinita de comida. De quitutes baianos, a paõzinhos, bolos e doces. Tudo feito ou doado pelos filhos de santo, sem economia. É o momento mais lotado da comemoração, que permanece de portas abertas também pra os visitantes. Até três policiais militares aproveitam a tranquilidade do dia para espiar e comer as iguarias. Da escadaria, com entrada pela Avenida Vasco da Gama, surgem cada vez mais pessoas.

“É muita gente envolvida. Nós cozinhamos muito. Tanto para o orixá, quanto pra a gente”, conta a filha pequena de Bàbá Pecê, Barbara Cristina, 77. O terreiro começou a receber filhos de outras casas, ramificações do Terreiro de Oxumarê, desde a segunda-feira que antecede as celebrações. Os colchões ficam espalhados.“Esse dia para a gente é de muito axé, de reencontro entre irmãos. Dia da força desse orixá, que nos une para nos fortalecer”, explica  Mãe Rita de Iansã, ialorixá no Axé Tasitaô, em Aracaju.O psicólogo Leonardo Moiser veio da França para vivenciar a celebração para Oxumarê. O primeiro contato com o Candomblé foi adolescente, com livros de Jorge Amado. Na prática, conheceu o candomblé em Milão, numa festa para Xangô. Passou mal, era sinal de que a cabeça precisava ser feita - fase de iniciação na religião. Ninguém estranha os diferentes sotaques e cores. Ali, são todos irmãos. “Já vim ao Brasil. Dessa vez, pensei em vir pra Salvador, para ver o candomblé onde ele nasceu, na sua raiz”, conta. 

O dia segue entre rituais secretos e momentos de interação. Depois do almoço, a noite já começa a ser planejada pelos filhos de santo, que circulam de lá para cá  para organizar os últimos detalhes. Então, pouco depois das 20h, os filhos de santo substituem o branco pelas roupas coloridas, como divindades, e se espalham pelo terreiro. É a etapa final do dia de reverências a Oxumarê. Os orixás são vestidos em seus filhos e dançam para as visitas. E o amarelo do dono da casa ilumina a noite.  

De Cachoeira para a Federação

A história do Terreiro de Oxumarê, hoje localizado próximo ao final de linha do bairro de Federação, começa na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano. O fundador, Bàbá Tàlábí, africano da cidade Kpeyin Vedji escravizado no Brasil, foi um dos responsáveis por disseminar o culto aos orixás na região. A história do Oxumarê é, portanto, também uma parte da formação do Candomblé no Brasil.

“Certamente é um dos mais antigos terreiros do Brasil. Chegou aqui em Salvador há mais de 100 anos”, afirma o antropólogo Ordep Serra. O Oxumarê é um terreiro jejê-nagô e teve em sua origem sacerdotes de ambos os ritos. “Cultua tanto orixás quanto voduns”, completa Ordep.  

De Cachoeira, a Casa de Oxumarê, o orixá da riqueza e da permanência, da união entre o céu e a terra, passou pelos bairros de Pau Miúdo e do Garcia, até chegar à Federação. 

No ano de 1904, o terreiro foi vítima de perseguição e Babá Antônio migrou para a atual sede, então um distante bairro da cidade. Os policiais diziam que a estrada esburacada dificultava a circulação na área. Se a perseguição era uma realidade, distância era o mais próximo possível de segurança. No último mapeamento realizado pelo Ministério da Cultura, em 2007, o bairro tinha 23 terreiros.“E esse é um dado importante. Também porque justamente ali os pais e mães de santo puderam arrendar terrenos para funcionar”, explica o antropólogo Vilson Caetano, que participou do dia de homenagens ao orixá. De tantos filhos, o Oxumarê começa a romper fronteiras. Mãe Cotinha de Yéuá já havia iniciado mais que 100 pessoas no candomblé, quando, naturalmente, a casa começou a se ramificar. Mas a raiz permanece a mesma ao longo dos anos. “Nós todos somos como uma grande árvore, mas preservamos a mesma raiz. Aqui, a gente busca essa raiz”, acredita o babalorixá Fernando de Xangô, do Ilê Axé Tobi Ajuwobalade. Daí, Baba Pecê ser um Olori Egbé, o grande cérebro desta comunidade. 

* Com orientação da editora Ana Cristina Pereira