Festa de Santa Bárbara e Iansã esteve ameaçada, mas foi ajudada por um bingo

Caruru de 4 de dezembro em Salvador ainda precisa de apoio; saiba como ajudar

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  • Da Redação

Publicado em 10 de novembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Vermelho é livre cor na Bahia. Não há um único lembrete, acerto feito, carro de som ou edital público que convoque ao uso, comedido ou exagerado, sempre às quartas-feiras.

O chamado vem pela devoção, no encontro sincrético de Iansã com Santa Bárbara. No candomblé, a orixá tem a força da sedução e o aprendizado com tantas outras divindades. De Ogum, usa a espada e, de Oxaguiã, o escudo. Com Exu, dominou o fogo e, com Oxóssi, aprendeu a caçar. De tantos, o amor veio pelo Rei Xangô, adquirindo o poder do encantamento e o controle dos raios.

Santa Bárbara viveu na região da Turquia, no século III, antes de Cristo. Filha única, parte da pouca vida que teve levou aprisionada em uma torre por ordens de seu pai, o rico mercador Dióscoro. O cárcere era o desejo de proteção pela sua virgindade e medo da corrupção dominante. Livre, Bárbara quis seguir os caminhos do cristianismo. O pai não apenas a proibiu, como a torturou e executou. Consumado o assassinato, um raio riscou o céu e fulminou o corpo do algoz, que tombou sem vida.

Na imponência de Iansã e no martírio de Bárbara, as descargas elétricas unem heroísmos femininos e o vermelho se multiplica. Um olhar minimamente atento consegue captar as paletas de cores, tons sobre tons, nas roupas de simpatizantes e assumidos devotos na Cidade da Bahia. Imagens de Iansã e Santo Antônio na capela do Mercado de Santa Bárbara, na Baixa dos Sapateiros (Foto: André Uzêda) O ápice da festa, das duas, acontece no dia 4 de dezembro.  Este ano a coincidência é ser dia 4 exatamente uma quarta-feira. Primeiro vem a missa campal na Irmandade Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. As imagens vão saindo, em sequência, de dentro da igreja, carregadas no andor. Primeiro Cosme e Damião, depois São Jorge, São Sebastião, São Miguel, São Lázaro, São Gerônimo e, por fim na apoteose geral, Santa Bárbara.

Mercado na Baixa dos Sapateiros O cortejo é um caminhar histórico de quase 400 anos. Bárbara sai da igreja, carregada, e passa em frente ao mercado dedicado à santa, todo pintado em vermelho, na Baixa dos Sapateiros. É um reverenciar à antiga casa. A imagem, hoje no altar da Rosário dos Pretos, ficava lá no mercado, até ser doada de papel passado e tudo para a Irmandade, em 1987.

Enquanto muitos seguem a comitiva, outros tantos se lambuzam no caruru oferecido dentro do mercado de Santa Bárbara. Uma tradição mantida pela obstinação de uma mulher. Maria Isabel Batista, 69 anos, herdou a organização e está há quase 20 à frente do banquete religioso.

Nascida em Sergipe, veio ainda muito nova à Bahia. Dona Isabel, como é mais conhecida, cuida também da capela dedicada às duas divindades, bem protegida no andar térreo do mercado. Ela limpa, ornamenta a decoração, encomenda flores e organiza as oferendas. Dona Isabel organiza o caruru de Iansã e Santa Bárbara há quase 20 anos (Foto: André Uzêda) “Tudo isso que faço foi um chamado que recebi tanto de Iansã, quanto de Santa Bárbara. Elas me pediram pra cuidar da capela, que organizasse a festa. Aparecem e conversam comigo muitas vezes em sonho. Fiz e faço tudo isso. E já fui agraciada com tantas coisas alcançadas, de saúde à escolha do meu marido”, brinca.

Pindaíba e salvação Nos momentos de maior penúria, a festa minguou, embora nunca tenha deixado efetivamente de acontecer. Custos com floricultura, pintura das paredes, quiabo e outros tantos ingredientes elevam o ordenado para mais de R$ 10 mil.

Faz algum tempo que os locatários do mercado não enchem mais o pires para cobrir os custos – o dinheiro já não circula tanto por lá e alguns novos vizinhos são pentecostais. O vermelho das divindades virou mimese para o fluxo de caixa da organizadora...  

Dona Isabel chegou a temer o fim da tradição. Duas das entidades mais populares da Bahia poderiam perder justamente o lado mais popular da festa. Ela riscou uma vela e pediu ajuda externa. Não sabe qual das duas atendeu, mas desconfia que tenha sido Iansã. Apareceram Tenille Bezerra, Fabiana Marques e Débora Simões.“Iansã tem isso de unir as pessoas em torno dela. De trazer gente boa pra junto e aprender com quem se aproxima. Essas meninas são filhas de Iansã, que apareceram pra me ajudar. É mais uma graça alcançada”, diz Dona Isabel, emocionada.O trio, formado por mulheres jovens, organiza pelo terceiro ano seguido o bingo das santas, que acontece lá mesmo no mercado. É no sábado que antecede a festa. Neste ano, será dia 30 de novembro. Às 13h tem a feijoada, com samba de terreiro. Às 16h, a sorte é lançada para o preenchimento das cartelas e entrega dos prêmios. Débora, Fabiana e Tenille. As filhas de Iansã que organizam o bingo (Foto: Arquivo Pessoal) “Ano passado a gente arrecadou R$ 2.500 e entregou a Dona Isabel para conseguir organizar o caruru. É interessante porque, assim como a festa, o bingo é feito com muito amor, mas também com poucos recursos. A gente vai de porta em porta pedindo que os comerciantes, as empresas e fundações que nos ajudem com os prêmios. E, a partir daí, vendemos as cartelas do bingo e juntamos o dinheiro”, diz Tenille.

Ela conta que a reunião das três se deu por acaso.“Eu sou devota de Iansã e já conhecia Fabiana. Conheci Débora numa festa de aniversário de uma outra amiga. Ela pesquisa sobre as tradições populares da Bahia e, de um jeito, a conversa acabou levando até Dona Isabel e a necessidade de proteger esta festa que é um patrimônio da Bahia”.A novidade de 2019 é que, além do bingo, foi organizada também uma vaquinha para arrecadar coletivamente dinheiro para os festejos.

Vágner Rocha, doutorando em história pela Ufba, pesquisa as transformações desta festa ao longo do tempo. “Eu entendo a festa em três grandes fases. Já tivemos uma fase de invisibilidade, de inconstância e, há um tempo, estamos vivendo a de ascensão, isso desde que a Rosário dos Pretos assumiu a organização, no final década de 1980, com apoio dos poderes públicos e órgãos de turismo. Aqui no mercado é importante a manutenção da tradição do caruru porque é o lado popular, das pessoas demonstrando sua fé da forma mais livre e genuína”, analisa.

Vágner analisa a história e eu escrevo esta coluna. No entanto, noves fora os dois, todas as ações deste relato são acionadas por forças femininas. Bingo! Quem faz mesmo a história e a escreve é Dona Isabel, Tenille, Fabiana e Débora. Regidas por duas divindades mulheres: Iansã e Santa Bárbara.

Serviço Bingo das Santas Dia: 30 de novembro (sábado) Horário: A partir das 13h Valor da cartela: R$ 5Clique aqui para participar da VAQUINHA VIRTUAL.