Filantrópicos, hospitais Evangélico e Sagrada Família enfrentam crise financeira

Unidades estão há, pelo menos, quatro meses sem pagar salários

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  • Da Redação

Publicado em 2 de agosto de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Evandro Veiga/CORREIO

Com dois filhos e contas atrasadas, um funcionário do Hospital Evangélico da Bahia, em Brotas, relatou ao CORREIO a situação difícil que ele e outros colegas estão passando, sem receber salário há, pelo menos, quatro meses. Quem trabalha no Sagrada Família, em Monte Serrat, na Cidade Baixa, também reclama do atraso de cerca de cinco meses nos salários e sobre a falta de informação sobre quando os pagamentos serão feitos. Ambas são unidades filantrópicas e tradicionais de Salvador que funcionam há mais de 70 anos.

“Isso já virou uma bola de neve, está vindo de vários meses e não temos uma resolução”, disse, sem se identificar, o funcionário do Evangélico. “Eu tive a minha luz cortada por falta de pagamento. Já cancelei a minha internet também. Hoje, as despesas de casa estão por conta da minha esposa, que ainda trabalha, e me ajuda como pode”, contou ele.

Além do atraso nos pagamentos, a redução do número de leitos também preocupa o setor. O assunto está sendo debatido em Salvador na 13ª Convenção Brasileira de Hospitais. Presente no evento, o presidente da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), Adelvânio Francisco Morato, afirmou que 3.053 mil leitos em hospitais privados e filantrópicos foram fechados na Bahia entre 2010 e 2019.

O número correto de leitos fechados em hospitais filantrópicos e privados, na Bahia, entre 2010 e 2018, é de 3.053, e não 1.300, como foi informado por Morato na semana passada. A informação foi corrigida 

Ele aponta que a redução é preocupante porque 197 dos 352 hospitais privados e filantrópicos do estado fazem atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), já que as 57 unidades de saúde pública do estado não comportam a demanda dos pacientes.  “Houve um fechamento de um grande número de leitos de 2010 até 2019. Isso nos preocupa porque são leitos que atendem à rede SUS. Esse fechamento ocorre pela defasagem da tabela SUS e pela crise do país. O número de hospitais que atendem ao SUS evidencia a importância da rede privada no atendimento à população nos estados”, explica Morato.O diretor executivo do Hospital Evangélico, Breno Sena, informou que o atraso dos salários ocorre há quatro meses e é consequência da demora no repasse dos valores pagos pelos convênios e pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ao hospital. Em resposta enviada às 15h34 desta sexta-feira (2), a unidade de saúde negou a versão do gestor e apontou que os pagamentos estão atrasados há um mês.

Por ser uma instituição filantrópica, o orçamento do Evangélico é 60% proveniente do reembolso dos atendimentos para a rede pública - percentual determinado pelo Ministério da Saúde (MS). Ainda segundo Sena, o problema é que não há um reajuste na tabela de repasse, “há muitos anos”.

“O subfinanciamento das tabelas é incompatível com os custos da saúde. São anos sem reajustes, com pequenos e pequenas atenções específicas, em médias complexidades, mas a tabela não é revista há muito tempo. Os hospitais trabalham com valores extremamente baixos com relação à saúde, e isso causa a crise”, disse o diretor.

Pai de cinco filhos, um funcionário do Sagrada Família, que também pediu anonimato, contou à reportagem que o hospital não dá uma posição sobre o motivo dos atrasos e nem uma previsão de quando o pagamento será realizado.

“O salário era todo dia 7, sem falta. Isso nunca acontecia aqui, sempre pagavam em dia. A explicação que eles nos dão não é convincente. Tenho 5 filhos e uma esposa desempregada, a situação fica difícil a cada dia que passa. Não tem muito tempo que cortaram a luz da minha casa, por sorte consegui pagar e religar”, lembra ele.

A reportagem tentou contato com a diretoria do Sagrada Família, que tem como fundadores o padre Raimundo dos Anjos e a madre Maria Clara do Menino Jesus - ambos em processo de canonização -, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Em nota enviada às 9h21 desta sexta (2), o Sagrada Família aponta que não houve o atraso no pagamento dos salários, mas uma mudança na data de remuneração dos funcionários celetistas.

Custo alto A professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-Ufba) e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde, Erika Aragão, confirma que o baixo valor da tabela de repasses do SUS é o problema principal enfrentado pelos hospitais. Procurado, o ministério da saúde não esclareceu as regras de repasse para os hospitais privados que atendem o sistema único de saúde e os filantrópicos.

“Na verdade, não é só a crise econômica, isso é anterior à crise de 2008. O setor tem problemas porque tem o custo muito alto. Os planos de saúde já pagam o procedimento como todo. Eles sempre auditam, e a margem de pagamento diminui bastante. O valor da tabela do SUS está sem reajuste há muitos anos, abaixo ainda do valor pago pelos planos. Apenas alguns serviços são bem remunerados”, explicou a pesquisadora.

O presidente da Associação de Hospitais e Serviços de Saúde do Estado da Bahia (AHSEB) e vice da FBH, Mauro Adan, cita a redução no número de leitos como consequência da crise, mas diz que o quadro está estabilizado. “Quando a economia começa a se fortalecer, os empresários têm mostrado que há um grande interesse no mercado da Bahia.”

Impactos Por enquanto, quem também passa por dificuldades são os comerciantes do local devido ao movimento menor. Há mais de 30 anos, o restaurante da dona Maria do Carmo, 73 anos, funciona em frente ao hospital da Sagrada Família. O número de clientes do estabelecimento reduziu conforme o agravamento dos problemas financeiros da unidade de saúde. Ex-funcionária do Sagrada Família, Maria do Carmo faz bicos para complementar a renda (Foto: Evandro Veiga/ CORREIO) Para driblar a crise, ela está topando qualquer serviço, seja de costura, xerox de documentos, venda de cosméticos, ou até mesmo levar um paciente em um lugar mais distante como motorista de aplicativo. “O hospital está falindo aos poucos, sei disso porque desde que trabalhei lá, as coisas só pioraram. Hoje, eu não posso apenas depender das pessoas que vêm resolver algo aqui, preciso me virar de outras formas para garantir o sustento. Antigamente, meu restaurante bombava, era sempre cheio. Agora, apenas uma ou duas pessoas almoçam aqui por dia. Precisei despedir dois funcionários que eu tinha, agora somos só eu e meu filho tocando o barco”, contou.

Quem trabalha nos arredores do Hospital Evangélico também tem percebido uma redução da clientela. A comerciante Mari Rodrigues, 42 anos, que possui, há dois anos, uma barraca de lanches vizinha da unidade de saúde, sentiu o impacto da crise financeira diretamente em suas vendas.

A comerciante afirmou que nos ‘dias bons’, quando os funcionários recebiam os pagamentos normalmente, o movimento no seu estabelecimento era maior, a ponto de vender cerca de 120 salgados por dia. Hoje, não consegue vender sequer a metade. Com a crise no Evangélico, Mari Rodrigues não está vendendo nem a metade dos lanches (Foto: Evandro Veiga/ CORREIO)  “Com o convívio do dia a dia, fiz amizade com muitos funcionários, eles chegam aqui reclamando que estão sem dinheiro há algum tempo. Para alguns, os mais próximos, eu abro uma conta para não ficarem sem o lanche da manhã, mas não posso abrir a exceção para todos, essa é a minha única fonte de renda”, disse ela.

Sem SUS, unidades na capital são ampliadas

Os hospitais privados Aeroporto e o Itaigara Memorial não estão “penando” com a redução de pacientes e dos repasses dos convênios. Ambos não atendem pacientes do SUS.

Sem negar a crise no setor, o diretor administrativo do Hospital Aeroporto, Alfonso Carvalho, afirmou que o empreendimento está em processo de ampliação devido à demanda. Ele acredita que o sucesso da unidade se deve a uma união entre a qualidade do serviço e a localização - a instituição fica na Estrada do Coco, em Lauro de Freitas.

“Nós temos evoluído bastante, com parcerias com convênios, modernizando e atualizando o hospital, e isso faz com que a gente tenha uma alta demanda”, diz.

O Itaigara Memorial também aumentou o número de leitos e salas de cirurgia desde 2014. O gerente comercial da instituição, Eduardo Cruz, diz que a crise fez com que a gestão tivesse que buscar por inovação para não ser afetada.

“A gente precisa focar na excelência do serviço para o cliente para que ele possa ter uma boa experiência. Isso que vai dar sustentabilidade para manter a instituição. Esse momento de crise impacta e traz a obrigação de ter criatividade, de investir em novas tecnologias”, afirmou Cruz.

A pesquisadora do ISC-Ufba, Erika Aragão, aponta que uma boa gestão é essencial para manter o hospital com uma boa condição financeira.

* Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier. Colaborou Tailane Muniz.