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Paulo Sales
Publicado em 31 de outubro de 2022 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
“Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”. Com essa indagação, que encerra a página 1.045 e todas as outras, pus fim à árdua escalada de A Montanha Mágica. Uma indagação incomodamente atual, mesmo passados quase 100 anos do momento em que foi escrita. É que evoluímos em espiral. E tempos ásperos sempre regressam em algum momento, como visitas indesejadas.>
Ler a obra maior de Thomas Mann foi uma experiência exaustiva, que por vezes me provocou um fastio quase irremediável. Mas confesso que ao terminá-la senti uma valorosa sensação de dever cumprido e até mesmo de prazer e satisfação. O volume, até então íntegro, tornou-se com o manuseio um calhamaço retorcido feito uma videira antiga. Lembro do que disse um amigo, mais versado que eu na arte das letras, quando escrevi uma crônica recente comentando sobre o enfado que a obra me causava:>
“Em A Montanha Mágica, a linguagem tem as arestas das rochas. Exige esforço de alpinista da cultura, mas quando se chega no topo a aventura valeu a pena. Aliás, os romances de ideias, com personagens intelectuais discutindo tudo, como Contraponto, de Huxley, são de leitura arrastada, mas compensadora”. Ele tem toda razão. No terço final, o romance ganha uma dimensão que só seria possível enxergar naquela altura. Há um fatalismo sombrio, capturado numa mudança de tom que prenuncia a chegada da guerra. A tal “festa universal da morte”.>
A frase que encerra o romance permaneceu comigo nas horas seguintes ao fim da leitura. E ainda agora me acompanha nesta noite alta, enquanto bebo um vinho e ouço um lindo álbum do pianista argentino Daniel Barenboim, em parceria com os músicos Rodolfo Mederos e Hector Consol. Chama-se Piazzolla Et Al: Mi Buenos Aires Querido e, como sugere o nome, promove uma releitura afetiva de clássicos do tango e do seu maior artífice, o gênio irascível do bandoneon.>
Fico aqui na varanda ouvindo essas melodias que me encantam porque preciso espairecer. Deixar um pouco de lado o cansaço mental provocado pelo trabalho, as preocupações da vida prática, as querelas políticas onipresentes nas redes sociais e nos telejornais. É uma maneira de fazer surgir a beleza, a contemplação pura, sem mensagens no celular ou contas a pagar. Já é tarde e todos dormem aqui em casa. A rua está deserta.>
Ouvir o álbum de Barenboim me faz ser invadido pela atmosfera portenha: sua melancolia e sua herança europeia, sua boa comida e sua literatura imensa. Algo que teve início mais cedo, quando assisti ao filme Argentina, 1985, do diretor Santiago Mitre. Ele rememora os percalços vividos pelos promotores públicos Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, responsáveis por investigar e processar os líderes da brutal ditadura militar que assolou o país entre 1976 e 1983, deixando uma legião de mortos, torturados e desaparecidos.>
Mais uma vez, fatos ocorridos em outros tempos guardam uma incômoda semelhança com os dias atuais. Parece que ficamos presos aos grilhões do passado, incapazes de avançar como civilização, teimosos e estúpidos como soldados rasos numa batalha já perdida. “Surgirá um dia o amor?”, pergunto agora, filho enfermiço da vida que sou, como o Hans Castorp de A Montanha Mágica. Barenboim parece me dizer que sim, ao reviver um tema de Piazzolla de que gosto muito: Adiós Nonino.>
Conto ansioso os dias deste outubro carregado que não vai-se embora. Um outubro que definirá nossas vidas por muitos anos, talvez décadas. Por isso tenho as fibras tensas e não relaxo como gostaria. Por isso permaneço desperto quando já deveria estar entregue aos braços de Morfeu. Por isso trago comigo esse alheamento, que ao menos me permite viajar sensorialmente até Buenos Aires, enquanto fecho os olhos e sorvo saciado o último gole de vinho.>
Penso em meu pai, que como eu gostava de vinho e da penumbra das madrugadas. Foi ele quem primeiro me recomendou A Montanha Mágica, quando eu era ainda um pré-adolescente e já amava o mundo secreto das palavras. Nem sei se ele chegou a ler o livro, mas estava ali para me mostrar o valor e a perenidade da alta literatura. Décadas depois, ao concluir a leitura, agradeço tardiamente a sua dica. Pena que não possa compartilhar com ele essa gratidão.>