Fome não espera: O drama dos baianos que encaram filas do auxílio emergencial

Conheça a realidade de oito pessoas que precisam do benefício emergencial do Governo Federal

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 1 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arquivo pessoal

A pandemia do novo coronavírus escancarou a pobreza que já existia no Brasil. Agora, esse contorno dramático ganha uma nova cara, estampada nas enormes filas e aglomerações que surgiram essa semana na frente das agências da Caixa Econômica Federal.   

Mesmo com a recomendação de que as pessoas fiquem em casa e promovam o distanciamento social, milhares de baianos têm deixado suas residências e enfrentado situações humilhantes e constrangedoras para conseguir o benefício do Governo Federal. Dormir na rua, tomar chuva e, talvez, o mais doloroso, passar fome, são algumas das realidades vividas. 

Não foi difícil para o CORREIO encontrar as histórias dessas pessoas. Bastava chegar na agência da Caixa que alguns cidadãos, na esperança de terem seus problemas resolvidos mais facilmente, abordavam o repórter e pediam que o drama vivido fosse contado no jornal. 

Esse é o caso da Tainan Freitas, a estudante que perdeu o estágio na pandemia; Reginaldo Nascimento, o desempregado que não teve seu auxílio aprovado pelo governo federal; Juciara Bispo, a mãe solteira que desde a última segunda-feira tenta sacar o benefício; e Reginaldo Cerqueira, o motorista de Uber que foi assaltado e não consegue arrumar emprego. 

Além desses cidadãos, o CORREIO apresenta outras histórias de pessoas que encontramos nas filas das agências da Caixa localizadas nos bairros do Cabula e Largo do Tanque. Nessa última, agentes da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) e da Guarda Municipal realizaram uma fiscalização educativa no local, na quinta-feira (30), para evitar aglomerações.  

“A gente entende a necessidade das pessoas receberem o benefício. Por isso, estamos tentando organizar as filas e estimulando o uso da máscara”, disse o diretor de fiscalização da Sedur, Átila Brandão Júnior.   

“Quinta-feira é o quarto dia seguido que eu venho para a fila” (Juciara Bispo, 35 anos)  (Foto: Arquivo pessoal) A situação difícil em que a mãe solteira de dois filhos vive em Dias D’Ávila nã tirou a esperança de que iria conseguir sacar o benefício do auxílio emergencial que ela tanto precisava. Juciara foi uma das pessoas que procurou o CORREIO e fez questão de nos contar sua história.  

Seu dia para receber o benefício, na verdade, era na segunda-feira (27), dia reservado para quem nasceu em janeiro e fevereiro. “Só que eu sempre vim pela manhã, pois tinha medo de sair de madrugada, porque aqui é perigoso. Aí, quando chegava, a fila já tava enorme e não dava tempo de ser atendida”, reclamou.  

A solução encontrada foi arrumar coragem para enfrentar a fila de madrugada. Ela teve a ajuda de sua prima, que a acompanhou no percurso de 20 minutos andando, e, juntas, acamparam na agência da Caixa localizada no Shopping Dias D’Ávila, às 2h da manhã.  

Mesmo assim, Jaciara não era a primeira da fila. “O primeiro chegou aqui 21h de quarta. Muita gente que estava na minha frente vendeu a vaga para outras pessoas, o que causou até um pouco de tumulto quando a agência abriu”, denunciou.  

Segundo Juciara, em Dias D’Ávila, uma vaga na fila do auxílio emergencial é comprada por até R$ 60, um valor que equivale a 10% do benefício mínimo recebido, o de R$ 600. “Não vale a pena comprar, esse dinheiro faz falta. Por isso eu encarei a madrugada” disse.  

Antes da pandemia, Jaciara trabalhava com bicos. A única ajuda que recebeu até agora foi a do auxílio merenda da escola de uma das filhas. “Sempre falta comida, mas para meus filhos não perceberem, eu corro logo atrás de conseguir algo”, destacou.  A esperança de Jaciara valeu a pena. Ela mandou uma mensagem para o CORREIO e informou que, às 11h30, saiu do banco com a solução do seu problema. 

“Era uber, mas fui assaltado e perdi o carro no dia 8 de março” (Reginaldo Cerqueira, 37 anos)  (Foto: Daniel Aloisio/CORREIO) Chegar cedo, ainda na madrugada, pode ser a receita para conseguir o atendimento. O motorista de aplicativo Reginaldo Cerqueira disse que chegou à meia-noite na agência da Caixa no Largo do Tanque. Na quarta-feira, quando ele tinha chegado mais tarde, não conseguiu ser atendido. 

Quando encontrou a reportagem, Reginaldo fez questão de mostrar, com os olhos marejados, o Boletim de Ocorrência que fez no dia 8 de março. No mesmo dia, três homens o abordaram na Avenida Otávio Mangabeira, em Itapuã, e o colocaram no porta-malas do seu veículo. “Fui levado para a região do Centro Industrial de Aratu, onde eu consegui fugir”, relatou. Os assaltantas seguiram com o seu veículo, que Reginaldo destaca que não o pertencia.  

“Era da locadora, que agora me cobra R$ 5 mil para acionar o seguro. Como vou pagar esse dinheiro se não tenho nem o que comer?”. Sem carro, Reginaldo não consegue rodar como motorista de aplicativo. Se antes da pandemia já era difícil arrumar emprego, agora a situação piorou.  

“Estou aqui de jejum, sem dinheiro. A última vez que comi foi ontem”, disse. Era quase meio-dia quando ele conversou com o CORREIO. Reginaldo tem se sustentado com a ajuda de amigos, pois a sua mãe faleceu recentemente. Seu auxílio já está aprovado, mas, assim como muitos que encaram a fila, o dinheiro não consegue ser movimentado pelo aplicativo da Caixa.    

“Passei 15 dias sem comer carne” (Josefa da Conceição, 51 anos)  (Foto: Daniel Aloisio/CORREIO) Quando a catadora de material reciclável, Josefa da Conceição, 51 anos, parou de trabalhar por causa da pandemia e perdeu a ajuda financeira que recebia de alguns parentes, viu a situação apertar. Ela alega que chegou a passar 15 dias sem comer carne, problema que só foi resolvido com as cestas básicas que lhe foram doadas. Josefa mora com outros três filhos, todos adultos, mas dependentes, pois estão sem ocupação durante a pandemia.  

Ela chegou na agência da Caixa no Largo do Tanque às 4h30. "Tomei chuva e encarei esse desafio, pois hoje é o meu dia de sacar o benefício. Minha geladeira está parada e esse dinheiro vai fazer muita diferença para a minha família”, disse a moradora de São Caetano. Antes da pandemia, quando ainda trabalhava com reciclagem, Josefa conseguia tirar somente R$ 60 por mês, geralmente. Seu Bolsa Família tinha sido cancelado.  

“Meus filhos fazem bicos, mas nesse período tudo fica parado. Não tem outro jeito, estamos precisando dessa ajuda para não passar fome”, disse. 

“Vamos andando até a Caixa, pois não temos dinheiro para o transporte (Mayara da Silva, 19 anos, e Valdelice da Silva, 43 anos)  (Foto: Daniel Aloisio/CORREIO) Mãe e filha resolveram seguir a mesma carreira, a de cuidador de idoso, mas só uma estava empregada na área antes da pandemia. Era a filha, Mayara da Silva, 19 anos. Porém, o idoso que ela cuidava faleceu logo no começo do distanciamento social.  

Nessa mesma época, a mãe solteira, Valdelice da Silva, que arrumou um bico como babá, foi dispensada pelos patrões, que não a estão ajudando financeiramente. “E olha que eles têm condições, mas me deram só R$ 100 a mais para comprar algum remédio, se precisasse”, lembrou.  

Essa dura realidade, somada à presença de três outros irmãos e uma filha de Mayara, fez a família da Engomadeira tomar a decisão de iriem andando até a Caixa no Cabula, pois falta até o dinheiro da passagem no transporte público. “A gente até faz sinal para o motorista de ônibus dar uma carona, mas ele nem repara”, afirmou Mayara. O percurso é de 1h somada ida e volta.   

O que tem ajudado a família a não passar fome nesse período são as três cestas básicas que conseguiram com a Prefeitura de Salvador e a ajuda que tem recebido da associação do bairro. “Quando meu gás acabou, por exemplo, uma vizinha me ajudou. Se ainda tiver oportunidade, faço alguma faxina, qualquer coisa, mas não paro de trabalhar”, disse Valdelice 

O auxílio emergencial da família já está liberado, mas mãe e filha ainda não conseguiram sacar. Elas alegam que o aplicativo da Caixa não tem funcionado, logo, a única opção é o saque do dinheiro. 

“Cortaram a bolsa de estágio nesse período” (Tainan Freitas, 28 anos)  (Foto: Daniel Aloisio/CORREIO) Tainan Freitas era manicure em Conceição do Coité e trouxe o oficio para Salvador, quando veio cursar fisioterapia. Hoje, ela mora no Bairro da Paz, sozinha. Tem a ajuda financeira da família, mas é a responsável por arcar com as despesas de aluguel, alimentação e transporte.  

Para completar a renda, começou a ser manicure em Salvador. Arrumou um estágio remunerado, um namorado e tinha tudo para se formar em breve como fisioterapeuta, até que chegou o coronavírus. “Cortaram a bolsa de estágio nesse período, não consigo mais encontrar clientes para fazer a unha e tenho passado dificuldades”, disse.  

Nesse período de distanciamento social, Tainan se mudou para a casa do namorado, no Saboeiro, que a levou de carro até a agência da Caixa no Cabula. Ele ainda continua empregado, o que tem sido um alívio na vida do casal. A quinta-feira foi o terceiro dia seguido que ela foi até o local. Chegou às 5h, com a esperança de sacar o dinheiro. Tainan também alega que não funciona o aplicativo da Caixa.   

“Eles dizem que não tenho direito ao auxílio, pois em 2018 fiz declaração de imposto de renda. Mas fui demitido em 2019 e estou desempregado” (Reginaldo Nascimento, 42 anos).   (Foto: Daniel Aloisio/CORREIO) Há dois anos atrás, Reginaldo Nascimento, 42 anos, tinha o prazer de ser empregado com carteira assinada na construção civil. Ele era encarregado de hidráulica e chegou a ganhar no ano mais de R$ 28 mil, como declarado no seu imposto de renda. O tempo passou e, em 2019, Reginaldo foi demitido. 

“A última parcela do meu seguro desemprego foi em junho de 2019”, declarou. Quem passou a sustentar a família foi a mulher, que é rifeira. Reginaldo passou a fazer bicos e, como tantos baianos, se tornou vulnerável nesse tempo de pandemia. No entanto, seu auxílio emergencial não foi liberado pela Caixa. Reginaldo diz que o banco alega que a sua declaração de imposto de renda lhe tirou o direito de receber o benefício.  

“Mas fui demitido em 2019 e estou desempregado. A sensação que eu tenho é que se eu não tivesse feito a declaração, se eu não contribuísse com as minhas obrigações de cidadão, teria sido melhor”, disse, revoltado.   

Felizmente, o auxílio emergencial de Patrícia, esposa de Reginaldo, foi liberado. Ela estava na fila pelo segundo dia seguido, a primeira vez acompanhada do marido, que tentou novamente ter o direito do benefício.  

“A nossa sorte é que minha esposa tem feito esses bicos, mas precisamos desse auxílio. Tenho uma filha de 17 anos que depende financeiramente da gente”, disse Reginaldo.  

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro