Fome, oportunidade, exotismo: por que tanta gente comeu carne de baleia?

'A comunidade teria condições de saber se a comida estava boa ou não e decidiu que estava', diz pesquisador

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  • Thais Borges

Publicado em 8 de setembro de 2019 às 05:52

- Atualizado há um ano

. Crédito: A baleia morreu após encalhar na praia de Coutos, no último dia 30 (Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO)

No início, o ajudante de pedreiro Jorge Silva, 27 anos, relutou. Depois de passar praticamente todo o dia tentando salvar a baleia jubarte que encalhou na praia de Coutos, no Subúrbio Ferroviário, no último dia 30 de agosto, não pensou que, dali, poderia surgir uma oportunidade após a morte do animal: a de ter acesso à carne de baleia gratuitamente. A esposa reforçou: devia deixar para lá. Temia até que a carne estivesse “envenenada”.

O gari Marivaldo Bispo, 52, que também participara da tentativa de salvamento, viu a oportunidade que Jorge, a princípio, não vira. Como ele, na noite daquela mesma sexta-feira, centenas de pessoas deram início a uma peregrinação pelos restos do mamífero. Baldes, sacos, facas, machados e facões eram carregados por gente que vinha de todos os lados: das comunidades vizinhas, a pé, aos bairros mais distantes, com até uma famigerada fila de carros formada às margens da Avenida Suburbana.

Marivaldo desceu para pegar uma parte da gordura. Queria transformá-la em óleo, que acreditava ser bom para os ossos. Só que, ao chegar perto do animal, um amigo ofereceu cortar um pedaço da carne. “Eu estava sem faca, sem nada, mas ele ofereceu e eu falei: ‘Me dê’. Tirou uns cinco quilos para mim”, diz Marivaldo, que fez um churrasco no domingo passado e guardou metade para o aniversário da esposa, neste domingo (8).

Entre cortes e brasas, a carne virou mercadoria. Como o CORREIO mostrou ao longo da última semana, há relatos de quem tenha comprado até em outras cidades, como Simões Filho. Por isso, o ajudante de pedreiro Jorge Silva mudou de ideia. Por três horas, acompanhou, de longe, a saga de quem vinha tirar um pedaço da baleia. Daí, tomou coragem. Se tanta gente estava ali, coisa ruim não deveria acontecer - ainda que integrantes do Instituto Baleia Jubarte alertassem para o risco de intoxicação alimentar. “Vi todo mundo pegando e pensei em pegar para comer. É uma carne exótica, né? Peguei tanta carne que deu para dar ao pessoal da família”, conta Jorge, que comeu da carne no último sábado e domingo, quando fez um churrasco.Ele chegou a pegar mais de 30 quilos, mas decidiu vender a carne após a repercussão das reportagens. Conseguiu lucrar cerca de R$ 300.

Almoço com carne Morador de Coutos há dois anos, Jorge paga R$ 350 no aluguel da casa onde vive com a esposa e os três filhos – uma menina de três anos e dois meninos, um de sete e outro de 13. Desempregado, fazia bicos de ajudante de pedreiro quando morava em Simões Filho. Hoje, praticamente todo o sustento da casa vem das faxinas que a esposa faz e do Bolsa Família. Ao todo, recebe, em média, R$ 600 por mês. 

Não é todo dia que comem carne vermelha. Quando o orçamento está mais folgado, rola uma carne de sertão, uma calabresa no feijão. Se estiver mais apertado, o almoço é frango com arroz e farofa.  Jorge, na segunda-feira (2), ainda não tinha vendido a carne (Foto: Mauro Akin Nassor/ Arquivo CORREIO) “Tem semana que a esposa faz faxina, tem semana que não faz. Quando faz, consegue algum dinheiro para a gente comer. Mas acho que ali todo mundo queria aproveitar um pouquinho, sentir o gosto, ver como era. E do jeito que está a fome hoje, né? Se lá fora eles comem, por que a gente aqui não pode comer também?”, reflete. Jorge está prestes a voltar com a família para Simões Filho. Lá, conhece mais gente. Acha que pode conseguir serviços de pedreiro ou de capinagem com mais facilidade. Na quarta-feira (4), o filho mais velho fez aniversário. O pai já tinha conversado com ele: do jeito que as coisas estavam, não tinha como comprar um bolo para comemorar.

A situação de Marivaldo é um pouco diferente. Além de trabalhar como gari, completa a renda com trabalhos de reciclagem. O que o moveu, diz, foi a curiosidade. Queria provar o sabor diferente. Mesmo assim, ele não despreza a economia que acabou fazendo. Nos últimos tempos, R$ 50 não têm bastado para comprar três quilos de ponta de agulha, que é uma carne de segunda. 

De fato, a poucos metros dali, um açougue vendia o quilo da ponta de agulha por R$ 13,99.“Eu estou bem, tanto que guardei para o churrasco. Mas muita gente precisava disso. Era para eles [a Polícia Militar e o Instituto Baleia Jubarte] terem liberado logo para a população. Tem muita gente carente, muito pai e mãe de família precisando de emprego”, afirma.Segundo ele, os moradores só conseguiram cortar a carne depois que as autoridades foram embora. 

Dono de uma vendinha ao lado do local onde a baleia encalhou, o comerciante Edvaldo Santos, 62, também pegou um pedaço da gordura. Alguém deixou um grande pedaço perto da costa e ele aproveitou para tirar uma parte. Menos de meio quilo, garante. “Esse óleo é muito bom. Você frita a gordura igual toucinho e tira o óleo. Só não peguei carne porque moro sozinho, mas, se alguém me chamar para um churrasco, eu vou”. 

Tanto Edvaldo quanto Jorge e Marivaldo fizeram questão de frisar a mesma coisa: tinham feito de tudo para salvar a baleia. Não acreditam que o fato de cortar o cadáver signifique algum tipo de desrespeito ao animal.  A baleia atraiu a atenção de curiosos de diferentes partes da cidade (Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO) Por que comer baleia? Os motivos para tanta gente ter comido – ou, no mínimo, cortado a carcaça com intenção de comer – carne de baleia são muitos. No entanto, como destaca a professora Fabiana Paixão Viana, doutora em Antropologia e professora de Antropologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), os hábitos alimentares são influenciados pelos pais, principalmente pelas mães. 

“No entanto, a oferta de alimentos, restrição ou abundância econômica e a influência dos pares são fatores importantes nesta escolha do que comer, sobretudo entre os adultos. Esta pode ser a explicação para o consumo da carne de baleia observado em Salvador”, explica. 

Até o século 19, a carne de baleia era consumida na Bahia. No entanto, hoje, essa proteína não faz mais parte do cardápio dos soteropolitanos – nem de brasileiros, de forma geral, já que nem a caça, nem a importação são permitidas no país. De acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Brasil faz parte do acordo internacional de proibição à caça de baleias. Os moradores da região onde a baleia encalhou tentaram salvá-la por horas (Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO) Por isso, até mesmo as formas de preparo, segundo a professora, são diferentes nos dois momentos. A questão econômica pode ser, sim, importante ao escolher os alimentos que serão consumidos.

“Porém, esta explicação econômica não pode ser observada unicamente. Precisamos associá-la ao desejo pelo novo (neofilia) e a influência dos pares, sobretudo em uma época em que as redes sociais disseminaram, muito rapidamente, a informação de que a ingestão deste tipo de carne é possível (apesar de tão estranha ao nosso paladar) e abundante, mesmo com todas as informações disponíveis sobre os possíveis perigos deste consumo”, completa a professora. 

Muita gente, como Jorge, "tomou coragem" depois que viu a movimentação. Para o psicólogo Curt Hemanny, doutor em Ciências da Saúde e professor de Psicologia da FTC, houve mesmo um comportamento de imitação ali. Em algum momento, uma pessoa ou um grupo de pessoas teve uma ideia, movida pela curiosidade. Em seguida, outras pessoas começaram a observar e reproduzir o modelo. “O efeito manada existe e é bem categorizado. Nós aprendemos por experiência, regra e imitação. Quando muita gente faz algo, é como se nossa espécie entendesse que aquilo é bom, é útil ou evita algo ruim”, afirma Hemanny.Há estudos que mostram que, se um grupo de pessoas numa sala é orientado a levantar ao escutar um sinal e uma pessoa sem a mesma orientação é colocada na sala, essa pessoa vai reproduzir o comportamento. Ao ver todo mundo levantando, ela provavelmente vai levantar também. “Alguém ou um grupo teve a ideia de cortar a baleia. Não dá para saber qual foi a motivação, mas, no mínimo, foi uma curiosidade. Mas a motivação dos outros foi imitação”. 

E o próprio discurso de que a carne poderia estar contaminada pode ser questionado, como pondera o professor Vilson Caetano Júnior, da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador de Antropologia da Alimentação. Para ele, essa postura pode ter sido adotada com o objetivo de controlar as pessoas.“A gente tem que levar em consideração que ali é uma comunidade de pescadores. Eles teriam condições culturais de definir se a comida estava boa ou não para comer. Há saberes na comunidade e as escolhas alimentares se dão a partir desses saberes. Foi a partir desses saberes, baseados na experiência e na vivência, que a comunidade resolveu comer a baleia”, reforça. Ele confirma que uma série de fatores contribuíram para muitos fazerem essa opção, desde o exótico até a vulnerabilidade, mas "antropologicamente falando, a comunidade comeu porque classificou aquela comida como boa". 

Até a última sexta-feira (6), oficialmente, ninguém tinha passado mal por comer carne de baleia. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), não foram registrados atendimentos relacionados ao consumo do mamífero. 

Qual é o valor nutricional da carne de baleia? A carne de baleia é uma excelente fonte de proteínas e, sim, tem um alto valor nutricional. A pedido do CORREIO, duas pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia (Ufba) escreveram sobre o valor nutricional e eventuais riscos à saúde em caso de consumo. 

De acordo com a pesquisadora Mariana Martins Magalhães de Souza, que faz doutorado em Alimentos, Nutrição e Saúde (Escola de Nutrição), e a também pesquisadora Elba Santos da Boa Morte, que faz mestrado em Ciência de Alimentos (Faculdade de Farmácia), o pescado - grupo de alimentos como a carne de baleia - é um dos mais vulneráveis ao processo de deterioração. 

Leia o artigo na íntegra: 

"Carne de baleia: valor nutricional e riscos à saúde Mariana Martins Magalhães de Souza Elba Santos da Boa Morte

A carne de baleia, apesar de não ser comumente consumida na Bahia e no Brasil, apresenta um alto valor nutricional, sendo excelente fonte de proteínas, com cerca de 25-27g em 100g da carne, baixo teor de gordura (0,5-1g em 100g) e de colesterol (31mg em 100g) e quantidade de carboidratos insignificante. A gordura presente na carne de baleia é, em sua maioria, do tipo monoinsaturada e polinsaturada, destacando-se os ácidos graxos polinsaturados, da classe ômega-3, importantes na prevenção de doenças cardiovasculares, aterosclerose e doenças degenerativas e na melhoria na resposta inflamatória e do sistema imunológico. Além disso, possui conteúdo relevante de macro e microminerais como sódio, potássio, magnésio, fósforo, ferro, selênio e zinco e vitaminas como tiamina, riboflavina e vitamina A.

O salmão e a sardinha, peixes conhecidos pelo alto teor de gordura boa (monoinsaturada e polinsaturada), apresentam quantidade de proteína inferior à da carne de baleia, sendo 19,3g e 21,1g em 100g da carne, respectivamente. Já o teor de gordura e de colesterol destes peixes é mais elevado que o da carne de baleia (salmão: 9,7g de lipídeos e 53mg de colesterol; sardinha: 2,7g de lipídeos e 61mg de colesterol). A carne de baleia tem alto valor nutricional (Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO) O pescado é um dos grupos de alimentos de origem animal mais vulnerável ao processo de deterioração, pois, na sua composição, possui muita água e elevada quantidade de nutrientes, que podem facilmente ser utilizados por microrganismos, além de ação rápida de enzimas naturais presentes nos tecidos e a presença marcada de lipídeos insaturados, que favorecem a deterioração.No pescado, o desenvolvimento microbiano é um dos principais fatores que ocasionam a deterioração. A grande maioria das bactérias apresentam enzimas que contribuem também para a desintegração dos tecidos, levando a uma série de reações bioquímicas indesejáveis e, consequentemente, à formação e ao acúmulo de substâncias de odor desagradável e tóxicas. 

Substâncias como a amônia, aminas e histamina são capazes de alterar características de sabor, odor e textura, que determinam a aceitação do pescado pelo consumidor. A histamina constitui uma amina e está presente em níveis baixos, no pescado recém-capturado, aumentando a sua concentração no processo de deterioração do pescado. A histamina pode ser tóxica, mesmo antes do produto estar visivelmente deteriorado ou sensorialmente inaceitável, ou seja, não é perceptível ao consumo.

A intoxicação histamínica é particularmente difícil de ser controlada, pois ela resiste ao calor (cozimento doméstico), podendo causar desde dores abdominais, náuseas, vômitos, diarreia a sintomas como dores e inchaços relacionados a urticárias (lesões na pele, com coceira) e formigamento na língua, eritema de face (vermelhidão no rosto) e na região do pescoço, dificuldade de deglutição, palpitações, podendo ocorrer choque anafilático.

Os principais microrganismos envolvidos na deterioração do pescado são pertencentes aos gêneros Pseudomonas, Acetinobacter, Moraxella e Flavobacterium, que são influenciados pela natureza do ambiente aquático. Além desses, os coliformes frequentemente podem estar relacionados à contaminação e à deterioração desses alimentos podendo causar as Doenças Veiculadas por Alimentos (DVA) que representam um importante problema de saúde pública.

As DVA podem se manifestar na forma de infecções e/ou intoxicações alimentares, sendo que os sintomas variam de acordo com o microrganismo ou a toxina encontrada no alimento e a quantidade de alimento ingerida. Os sintomas mais comuns são vômitos e diarreias, podendo também apresentar dores abdominais, dor de cabeça, febre, alteração da visão, olhos inchados, dentre outros".