Fragmentos de uma história quase romântica

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  • Kátia Borges

Publicado em 1 de novembro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

E então ele voltou. Foi o tempo certo, como se diz. Porque a pressa pertence a quem espera. Chovia muito, para desespero dela. Foram um casal incomum, qualquer clichê seria afronta. Abrir de guarda-chuvas, por exemplo. Talvez tocasse até alguma música de quando foram infelizes para sempre, trilha pouco romântica.

Como num musical ruim, seria o fim se os dois dançassem lá fora de mãos dadas na chuva. A paz pedia licença agora e já seria muito para eles aquele acenar de lenços. Mas o fato é que não houve preparo algum para aquela reviravolta no enredo da história, justo quando tudo parecia ocupar o lugar certo dentro dela.

Potes com lascas de angústia na prateleira de baixo. Mágoas em conserva na prateleira do meio. Ambos hermeticamente fechados. Também assim a esperança em pó, que ficava na parte mais alta, fora do alcance de propósito. Teria que mover a escada de madeira, apanhar o pote no alto. A força enorme para destravar a tampa.

Há tempos decidira que não valia à pena espiar lá no fundo, a conferir o que restara daquele sentimento moído após tanto uso. Entreabriu a porta de casa – talvez em busca de esperança, quem sabe – e o viu no jardim, mexendo na terra em torno de uma planta, como se tudo ali florescesse por sua presença. E não.

Ela respondia por tudo aquilo que crescera em seu jardim, desde a escolha ao plantio das sementes. Assumia responsabilidade até pelas folhas amarelas, que podava pacientemente a cada Verão. E não. Mesmo se houve negligência em relação à frequência das regas e alguma suculentas tenham agonizado em suas mãos.

Reparou em como a chuva havia encharcado seus cabelos, o mesmo rosto impermeável, os anos denunciados pelo modo como seu corpo se curvava, os joelhos enfiados na terra. Seria prece, o que esperava dela? Embora aguardasse qualquer gesto há anos, estranhava agora a presença daquele jardineiro improvável.

Porque se sentia uma Penélope tola, e isso não era. Porque se sentia refém, e não gostava. Porque era como se estivesse à espera dele todo o tempo, tecendo mantos para um inverno que seria de sol. O que diria sobre os lugares por onde andou? Talvez que esteve preso numa masmorra, o rosto oculto por uma máscara.

Talvez apenas que a vida andou e, quando olhou para trás, ela já não aparecia no horizonte. Talvez porque ficar nunca tenha sido uma possibilidade. Por quanto tempo ainda, aquele ritual de flores? Podia tocar o silêncio entre eles quando quisesse. Imaginando o que faria, fechou-se em casa novamente.