Game of Thrones no Parque da Cidade: conheça o grupo medievalista de Salvador

Equipe que se reúne todo domingo tem rei, rainha, nobreza e até batalhas

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  • Rafaela Fleur

Publicado em 18 de julho de 2018 às 15:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Renato Santana Santos/Divulgação

As vestes medievais, em tons de  azul-marinho e vinho, despertam a curiosidade de quem caminha pela Praça Confúcio, no Parque da Cidade. Atiçados pela movimentação singular, os passantes se aproximam, discretamente, na tentativa de compreender do que se trata. Se aglomeram em volta, com olhares suspeitos diante daquela gente fantasiada. São mais de 20. Seguram espadas, protegem-se com escudos, carregam arco e flecha. Gritam palavras de ordem, agem como se estivessem em uma arena, lutam como se fossem guerreiros. E são. Os curiosos não conseguem enxergar de longe, mas, se pudessem, certamente notariam o brasão e, logo acima dele, uma sigla: BCS. Significa Batalha Cênica Salvador, um grupo de atividades medievalistas. Batalha de Swordplay do Batalha Cênica Salvador (Fotos: Renato Santana Santos/Divulgação) É brincadeira? Também, mas não só. No BCS (@bcscofenix) tem lutas com espadas de espuma e com espadas de aço. Tem quem vá buscando apenas diversão e quem treine para competições olímpicas.  Nesse meio, tem até família real, com direito a reis e rainhas. É assim desde 2008, quando o grupo foi fundado por Paulo Merlino. Aliás, é sobre a cabeça dele que repousa a coroa soberana. 

O nascimento da realeza  Os encontros acontecem sempre aos domingos, no mesmo local. Começa às 13h e é planejado para durar até as 17h, mas sempre se estende. Ninguém quer ir embora. Para participar, não precisa se inscrever e nem pagar nada, basta chegar e procurar por Paulo - mas não o chame pelo nome. Lá, ele é o rei ou o tríade.  Paulo Merlino, o rei, ao lado de Renata Barros, a rainha (Foto: BCS/Divulgação) No primeiro contato, realizado por telefone, o monarca se mostrou sério, quase mal-humorado. O tom das palavras era altivo, típico de quem não queria muita conversa, quiçá dar entrevista. Pessoalmente, porém, ele esbanja gentileza. Distribui sorrisos e abraços apertados em todos que se aproximam. Confirma o clichê e garante que vem de infância. “Sempre curti medievalismo, desde pequeno. Amava RPG, videogame, cresci com isso. Depois comecei a fazer eventos e queria testar equipamentos. Foi assim que começou”, explica ele, que é formado em Química e funcionário público. Mais especificamente técnico portuário na Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba). No BCS, existe prática de arquearia profissional  Com equipamentos, Paulo quer dizer armas de swordplay - a modalidade mais famosa do BCS. “É nosso carro-chefe, todas as outras coisas vieram depois”, comenta. Swordplay é o nome dado ao esporte que simula uma luta medieval, onde os combatentes usam instrumentos de espuma - como escudos, espadas, lanças e machados. A maior parte das regras vem da esgrima e não existe limite de idade para participar. Treino de Swordplay, com instrumentos feitos de espuma  O primeiro treino, garante o rei, foi inesquecível. Aconteceu no dia 21 de abril de 2008, uma segunda, bem no feriado de Tiradentes. Ele, que só queria experimentar os instrumentos recém-adquiridos, não esperava receber muitas companhias. Foi surpreendido: apareceram mais de 20 pessoas, que se divertiram durante toda a tarde. Depois daquele dia, os encontros nunca mais deixaram de acontecer. O nome oficial só apareceu no fim de 2009, mas ali já estava formado o Batalha Cênica Salvador.

Sociedade medieval No BCS desde 2010, Jéssica Nonato, de cara, remete ao misticismo. Com colar de pedras naturais, enormes cabelos ruivos, espartilho apertado e roupas longas, a jovem de 23 anos confirma a primeira impressão. “Adoro essas coisas, sou bruxa mesmo!”, garantiu. Porém, que fique claríssimo que ela, além de feiticeira, é duquesa. E ama o que faz. Jéssica em sua coroação, quando nomeada duquesa (Foto: BCS/Divulgação) “A amizade me levou a continuar aqui o senso de família. Começou como uma brincadeira,  hoje faz parte da minha vida e tenho muitas responsabilidades”, comenta. Aliás, é importante entender que, no grupo, cada título de nobreza vem com uma obrigação. A da duquesa, por exemplo, é fazer assessoria de comunicação. Além disso, Jéssica coordena a confraria artística. Tudo que envolve arte, canto, música e dança passa pelo seu crivo.  Confraria artística no dia do Banquete dos Três Reinos, um evento para saudar a lua (Foto: BCS/Divulgação) A confraria, assim como o swordplay, é uma atividade organizada pelo BCS. Além dessas, outras duas têm máxima importância para o grupo: HEMA e arqueria. 

Sabe a esgrima? Até parece, mas não é. Ao contrário do esporte mais conhecido, o HEMA (Artes Marciais Históricas Europeias) se refere às práticas medievais que usavam espadas. Na modalidade, são manipuladas longas espadas de aço com lâminas não afiadas. Os praticantes usam roupas normais, com algumas proteções em lugares estratégicos. Felipe Barreto, instrutor de HEMA (Foto: Facebook/Reprodução) Sobre a arqueria, esqueça os pequenos arcos e as flechas de plástico. Lá, as ferramentas são imensas e feitas de madeira ou aço. Manusear é tarefa difícil. Eu, por exemplo, até tentei - mas acabei batendo no meu próprio rosto. Sem sucesso.  Os arcos utilizados na arquearia do BCS são usados para treinos olímpicos  Estudante de Direito, Felipe Barreto, 24, é o instrutor de HEMA do BCS há um ano. Nunca falta aos treinos, nem mesmo se estiver com o pé enfaixado. “Machuquei aqui, treinando. Acabei perdendo o controle e chutei o meu próprio calcanhar”, relata, despretensioso, como quem pouco se importa com a lesão. O rapaz descobriu a aptidão na Espanha e, logo após voltar, decidiu buscar um lugar em Salvador para dar continuidade à prática. “Vim uma vez e não saí mais”. 

Ao contrário de Felipe, há quem tenha se apaixonado primeiro pelo BCS e depois pelo esporte. É o caso da rainha Renata Barros, 28. A história, vale adiantar, é romântica.  Dia da coroação de Renata e Paulo (Foto: BCS/Divulgação) Amor das antigas Noiva de Paulo, o rei, Renata, que é bióloga, conheceu o BCS em 2010, por pura curiosidade. De tanto ouvir falar, resolveu ir até um dos eventos do grupo. Na época, a moça namorava com um antigo integrante da equipe, mal olhava para o soberano. O destino só juntou os dois tempos depois. “Nos aproximamos bem depois que eu terminei. Fui na casa dele, tomamos um vinho, sabe como é, né?”, brincou.

Após decidirem que a coisa era séria, Paulo resolveu oficializar e fazer tudo nos conformes. Conhecer a família da noiva? O pai? Que nada. Ele ignorou o futuro sogro e foi procurar o ex-namorado de Renata. “Ele queria saber se não tinha problema, se o rapaz não estava incomodado. Garantiu que a gente não ia ter nada caso meu ex ficasse chateado. Graças a Deus, ele disse que não tinha nada a ver com isso” comenta ela. 

Como boa rainha, Renata é quem dá a palavra final e organiza as questões administrativas ao lado do rei. Além disso, é arqueira - e não pense que é só diversão. Competidora profissional, ela participa de campeonatos brasileiros e, em 2020, pretende estar nas Olimpíadas de Tóquio. Quer mais? Ela também é fundadora das Amazonas, uma liga nordestina de swordplay só para mulheres, com 20 integrantes de diversos municípios da região.

Apesar de Renata e Paulo  serem o casal mais famoso do BCS, eles não são os únicos. “Aqui tem muito romance. A maioria dos namoros começa no grupo” garante a duquesa Jéssica. Ela, inclusive, soma nove anos ao lado de Ian Improta, 26, que é gran mestre da casa da moeda, ou seja, responsável pelas finanças do grupo.

Naiane Paixão, condessa, também tem quase dez anos de relacionamento com Fred Adler, 27, que é mestre da casa da moeda. “É a minha segunda casa, eles são minha família. É um porto seguro. Não toleramos falta de honra e deslealdade, aqui a gente tem valores, é diversão, mas trabalhamos muito mais que isso”, garante a condessa, relatando que já existiram casos de expulsão por falta de respeito e honestidade. Foi o caso de um ex-integrante que não admitia quando era atingido no Swordplay e teve que deixar o grupo. 

Os trajes, que eles mesmos criam e costuram, têm tons de vinho e azul. “Vermelho é o espírito fervoroso e guerreiro do povo baiano que batalhou pela sua independência. Azul é o mar que banha nossas terras”, explica o rei. Pouco tempo depois, todos se abraçam e começam a guardar as armas. O treino termina - e começa a contagem regressiva para o próximo domingo. *Com orientação do editor Victor Villarpando