Garrafas lançadas ao mar

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  • Paulo Sales

Publicado em 25 de outubro de 2021 às 00:21

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Não sei a quem dirijo as minhas preces. Dentro do mar, em um final de tarde que quase atesta a existência de uma força divina, eu vejo o sol agonizar a oeste, lançando seus tentáculos derradeiros. Como um polvo escapando ao arpão. Lanço no ar o desejo de transcendência e longevidade. Peço por mim: ao menos mais 30 anos de uma vida produtiva e feliz. Peço por minhas mulheres, que já deixaram a água e me aguardam na areia. Peço por meu pequeno filho peludo, também ali à espera.

Na sequência, enumero as pessoas por quem nutro um afeto genuíno: mãe, tios, irmãos, sobrinhos, primos, amigos e toda a gente que segue ao meu lado, povoando o mundo e o fazendo ser mais reconfortante. O sol se despede e permaneço na água morna, como se ela fosse líquido amniótico e eu estivesse dentro de um útero. Ou como se fosse um bebê temporão, um deus sem reino, um anjo sem asas. Estrelas e planetas brilham indiferentes e um barquinho passa ao longe.

Na praia à noite, eu me embalo na água e me recuso a sair, como se o mar fosse capaz de interromper a violenta implosão das horas. Sinto uma espécie de epifania e uma reconfortante sensação de plenitude. Enquanto mergulho na escuridão, é provável que os minutos estejam pairando no vácuo, como uma pedalada no vazio. Não tenho medo de peixes, das correntezas ou da morte. Nesse momento eu me sinto invulnerável, como se fosse capaz de estancar a sangria das horas. Como se fosse capaz de sobreviver a mim mesmo e ao meu tempo.

Mas logo deixo de lado o desvario. Gosto da vida. Temo pelo correr vertiginoso dos dias, como se a locomotiva do tempo fizesse questão de nos levar o mais rápido possível até a estação derradeira, sem que tivéssemos tempo de contemplar a paisagem. Um trem de alta velocidade a 300 km/h, quando tudo o que precisamos é de uma velha Maria fumaça, com seu passo ritmado de cágado e seu piuí-piuí.

“Os anos passam / Longe é a tenra idade / Ninguém pode nos entender”, canta Henri Salvador em Jardin d´Hiver. É uma sensação que tenho por vezes: a de que tudo o que erguemos soa incompreensível aos mais novos, como o idioma esquecido de uma tribo da qual não restam vestígios. É a comprovação de que vai chegar o momento em que o mundo não será mais habitável para nós, e teremos de dar lugar aos que chegam.

Saio enfim da água e o vento da noite me recebe, cálido, como são os ventos de primavera aqui na Bahia. Vou ao encontro de minha família e me cubro com uma toalha. As preces que fiz permanecem flutuando, como garrafas lançadas ao mar à espera do destinatário invisível. Preces que pedem apenas que sejamos poupados do sofrimento extremo, das perdas dilacerantes, do despedir-se cedo demais.

Isso foi na semana passada, e toda aquela atmosfera plácida se esvaiu na volta à rotina de trabalho e nos ruídos da cidade grande. Mais cedo fui ao mercado. Uma moça se aproximou e perguntou educadamente se eu poderia ajudá-la, já que ela não tinha nada para comer em casa. Vi que carregava uma embalagem com sobrecoxas de frango e me prontifiquei a pagar por ela. Já no caixa, percebi que um casal à minha frente também pagou alguma coisa para ela.

“Que mais temos, senão princípios, para aguentar no meio de toda essa merda?”, pergunta-se Ricardo Piglia em Respiração Artificial. É o que nos resta diante do desespero atroz, da podridão disseminada, da pobreza que se alastra como o vírus assassino, que por aqui encontrou o habitat perfeito. Sim, Piglia, só nos restam os princípios, e com eles vamos em frente. Só não sabemos para onde. Sejamos solidários, portanto, e tratemos de incluir os desconhecidos nas nossas preces. É o que pretendo fazer no meu próximo mergulho à noite numa praia deserta.