Gatos da discórdia: quem tem razão no caso dos 23 felinos que entraram na Justiça por R$ 230 mil?

Protetora pede indenização de R$ 10 mil por gato. Abrigo para onde eles foram levados defende donos do terreno: “nunca vi eles como vilões’

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 7 de março de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

Fotos de 20 dos 23 gatos 'autores' do processo de indenização (Foto: Divulgação) É possível imaginar 23 gatos indo “à presença de vossa excelência” - como está descrito na peça jurídica - reivindicar uma indenização de R$ 230 mil por danos morais? Aconteceu na 5ª Vara Cível e Comercial de Salvador, no Fórum Orlando Gomes, em Nazaré. Autores do processo, Margarida, Florzinha, Trico, Fofucha, Tim, Harry e mais 17 gatos não chegaram a miar diante do juiz, mas “mandaram” como representante a estudante Camila de Jesus.

Eles foram à Justiça contra as construtoras CIVIL e BARCINO ESTEVE, sócias da empresa responsável pelo terreno em que os gatos moraram pelos menos nos últimos três anos e oito meses, tempo que Camila garante cuidar dos bichanos. No início desse ano, a CIVIL e BARCINO ESTEVE começaram a erguer no local, que fica em um dos bairros mais nobres de Salvador, o empreendimento residencial Lucce Graça.

Por meio de Camila, os gatos querem que as duas construtoras arquem com as custas de manutenção e cuidados de alimentação e vermifugação dos animais. Na audiência de conciliação realizada na quinta-feira (5), não houve acordo entre as partes. As empresas garantem que os gatos não estão mais no terreno, onde a obra já começou desde o início do ano e que deu um destino digno e seguro aos animais. Gatos moravam em terreno na Graça (Foto: Divulgação) O destino, no caso, foi o Sítio Doce Lar, que fica na região no Cia Aeroporto. Mas Camila argumenta que as empresas demoraram anos para tomar providências e que cuidou dos gatos ao longo de todo esse período. Além disso, ela afirma que foi impedida pelas empresas de retira-los do espaço. Camila e os advogados também observam que quatro gatos morreram por negligência do empreendimento. Os autores do processo também destacam que cinco gatos continuam transitando no local sem qualquer assistência.

“Nunca botei no papel os gastos nesse período para não me assustar. Eu e minha mãe custeávamos exames, castrações, medicações e lares temporários para pós-operatórios. Na verdade, esse valor (R$ 230 mil) é uma estimativa que precisávamos colocar”, afirmou Camila após a audiência. Apesar disso, ela diz que todo o dinheiro desse processo vai ser destinado para os bichos. “Vai tudo para os gatos”. Os próprios advogados da causa, Yuri Fernandes Lima e Ximene Perez, afirmam que estão nessa como voluntários e não cobram nada pelo trabalho. 

Nota  Antes da audiência de quinta-feira (5), a CIVIL e a BARCINO ESTEVE emitiram nota garantindo que “todas as providências e cuidados necessários já haviam sido tomados”. Eles dizem que arcaram com “todos os custos para a captura (iniciada no dia 21/01 e finalizada no dia 28/01), procedimentos médicos-veterinários e destinação dos gatos lá encontrados com acompanhamento e concordância da autora da ação”. Processo dos gatos segue sem acordo (Foto: Divulgação) “Camila sabia o tempo inteiro que tomamos todas as providências necessárias. Não estamos entendendo porque esse processo”, disse o advogado Genecarlos Santiago, que acompanhava um representante das empresas. A nota destaca ainda que o Lucce Graça foi projetado pensando em animais de estimação. O empreendimento residencial vai possuir um Pet Place com mais de 180m². O CORREIO conversou com um dos sócios, conhecido por amar animais. “A outra parte sabe que fizemos de tudo. Eu começo a acreditar que a intenção final não é dar uma vida digna aos animais. Já começo a pensar em outra coisa”, sugeriu Barcino Esteve.

Acontece que os acionantes não vêm motivo para acordo. Isso porque, segundo Camila e seus advogados, o empreendimento só teria dado um destino aos gatos depois que foi notificado várias vezes e, em seguida, acionado judicialmente. Antes, as empresas teriam fechado todos os acessos para alimentar os animais. Foi quando dois gatos acabaram morrendo.

“Aí entramos com a ação. Primeiro enviamos minuta de acordo e eles ignoraram. Depois notificamos extra judicialmente e nada. Eles só passaram a tomar qualquer atitude em relação aos gatos após a ação. Antes do processo, ela (Camila) tentou dialogar, tentou retirar os gatos do local e foi impedida. Nada foi feito”, disse os advogados Yuri Lima e Ximene Perez. 

O fato é que a Justiça acolheu a peça inicial dos advogados dos gatos. Duas decisões judiciais já constam nos autos. Na primeira, no dia 22 de fevereiro, o juiz Érico Rodrigues Vieira apontou a ‘necessidade de preservação da vida, saúde e bem estar dos animais envolvidos’ e determinou a citação das construtoras para apresentação de defesa em até 15 dias. 

Camila e seus advogados chegaram a pedir a tutela antecipada dos animais e “a imediata suspensão do início das obras, previsto para o dia 6 de janeiro”. O pedido foi indeferido pelo despacho mais recente, no caso do juiz Joanisio de Matos Dantas Júnior. 

Ele constatou que as partes estavam “bem intencionadas e realmente preocupadas com o destino a ser dado aos animais” e agendou audiência de mediação. Como se sabe, não houve acordo. Os autores também reclamam da morte de outros dois animais no momento da castração dos bichanos. Para Camila, exames pré-cirúrgicos não foram devidamente realizados. “A castração é um procedimento que precisa de alguns cuidados. Certamente não foram feitos os exames devidos”, disse a protetora. 

Abrigo  Mas, como estão os gatos nesse momento? A fundadora e gestora do Sítio Doce Lar, Constança Silva Costa, garante que eles estão bem. “Estão saudáveis, todos castrados. São gatos ariscos, talvez pela pouca convivência com os seres humanos”. Ela afirma que, antes de acolher os animais, o abrigo recebeu a visita de representantes das empresas.

“Nunca vi as empresas como vilãs. Sempre se mostraram muito corretas e preocupadas com o bem-estar dos gatos”. Constança diz que fez duas propostas para acolher os gatos. Uma em que a empresa custearia tudo enquanto eles não fossem adotados e outra em que os bichos pudessem ficar definitivamente no abrigo. A segunda proposta foi aceita. “Pelo que entendi Camila fez a proposta às empresas e elas acataram. Não sei o que houve entre eles anteriormente”.

Constança diz que está com dez gatos originários do terreno da Graça no seu abrigo. “Camila me disse que eram vinte e poucos gatos, mas não vieram todos. Não sei se não conseguiram captura-los ou se eles dispersaram”. Camila explica que, além dos quatro que morreram no terreno e na castração e dos cinco que ainda transitam pelo local e não foram capturados, outros “desapareceram misteriosamente”. “Também acabei ficando com alguns”.

No total, enfim, dos 23 gatos, doze foram levados para o abrigo. Como dois morreram durante a castração, restaram dez. Aliás, a dona do abrigo contesta que tenha havido negligência das empresas na hora de castrar. “Qualquer cirurgia tem risco, ainda mais se tratando de animais oriundos da rua. Nem a prefeitura ou governo pedem exames antes de castrar animais. Porque a empresa precisa fazer?”.

A fundadora do abrigo também diz não entender porque os autores pediram de indenização R$ 10 mil por cada gato, sendo que o acordo com o abrigo foi infinitamente menor. “Camila me fez acordar com um valor de R$ 700 por cada gato para eu ficar com eles a vida inteira. Aí na Justiça está pedindo R$ 10 mil por gato. Não consigo entender. Fiquei abismada”.