Grupo de Saubara destaca o papel da mulher na luta pela Independência

Mulheres se fantasiavam para furar cerco português e levar alimento para maridos e filhos

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  • Nilson Marinho

Publicado em 2 de julho de 2018 às 16:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Pelas ruas iam-se as almas, penadas, a gritar feito gente a ser castigada no limbo do inferno. Eram 15, enfileiradas, empunhando armas nas mãos e tendo, sobre os rostos, mantos bordados. Não é possível saber a identidade de quem se esconde debaixo da vestimenta branca, mas sabe-se que são mulheres saubarenses, valentes, destemidas, assim como as saubarenses que colocaram para correr, no grito, por volta de 1820, os inimigos portugueses que insistiam em fazer do nosso estado uma colônia.

Quase 200 anos depois da Independência do Brasil na Bahia, aqui estavam elas, pelas ruas de Salvador, neste 2 de julho. São descendentes daquelas que já se foram, mas deixaram sua marca na história do nosso país e do nosso estado.

Elas fazem parte das Caretas do Mingau, grupo folclórico tradicional da cidade de Saubara, no Recôncavo Baiano. Por lá, na madrugada do dia 1° para o dia 2, as almas ganham as ruas distribuindo mingau e comemorando o livramento das garras portuguesas. 

História Para entendê-las, é preciso voltar ao tempo, lá em 1820, quandos os portugueses já cansados e famintos buscavam atacar cidades do Recôncavo em busca de mantimentos. Saubara é a porta de entrada para o Recôncavo, localizada nas proximidades da foz do Paraguaçu. Localização perfeita para os lusos avançarem interior adentro.

Os sauberenses não podiam aceitar tanto afronte. Os portugueses não avançariam sem antes derrubar uma legião de homens que deixaram a cidade, à época um vilarejo, para ficar de sentinela, na linha de combate, à espera dos inimigos, na ponta de Saubara, região beira-mar.  O grupo Caretas do Mingau é formado por 30 mulheres (Foto: Marina Silva/CORREIO) Os portugueses driblaram o cerco e o vilarejo foi ocupado. Restaram as mulheres. Para furar o batalhão português era preciso criar uma estratégia. Passar despercebidas e chegar até os amados e filhos que as aguardavam do outro lado do vilarejo era quase impossível. Mas, conseguiram. 

Na calada da noite, geralmente saindo do cemitério, elas perambulavam pelas ruas, vestidas de branco, com os rostos cobertos, amedontrando seus algozes com os gritos agourentos. A tiracolo estavam as armas, que mais tarde seriam usadas pelos homens. Na cabeça, panelas de mingau para dar sustância aos seus hérois. "Os maridos estavam brigando, no campo de batalha, e elas, se mascaravam, usavando disfarces, para amedontrar e afugentar os portugueses. Os gritos agourentos, como os de uma alma, deixavam os portugueses com medo e elas conseguiam passar com os alimentos, armas e remédios", conta o professor de história Betinho de Saubara, 62. Muito disso que foi contado acima vem da tradição oral. Poucos são os registros sobre a passagem histórica. Não à toa, quase não se fala sobre a contribuição das mulheres saubarenses na conquisa da Independência. 

Bel de Saubara, um dos articuladores do grupo, conta que o General Labatut, outra figura importante para a conquista, registrou em cartas as lutas das mulheres e dos homens saubarenses. "O Labatut registrou tudo isso. Assim como aves que defendem seus ninhos, as mulheres de Saubara defenderam seus maridos e filhos", diz o articulador.

“A luta se alonga por mais de seis horas; um assalto com desperdício de cartuchame. Os portugueses desistem do seu intento, para ameaçar Saubara, cujos defensores, sem distinção de sexo, dirigidos pelo padre Manuel José Gonçalves Pereira, os rechaçam”, diz um dos trechos do documento, impresso em outdoor carregado pelas caretas que iam à frente do cortejo. Mulheres desfilam armadas e com bacias de mingau na cabeça (Foto: Marina Silva/CORREIO) O padre Manuel José Gonçalves Pereira, representado pelo professor de história Betinho, também deixou sua contribuição na conquista. Do topo da igreja matriz, padre Manuel tinha uma visão privilegiada da Baía de Todos os Santos. Bastava uma embarcação ser vista no horizonte, para o clérigo mandar uma escravo às pressas avisar ao governo interino de Cachoeira. 

Era o padre Manuel também quem articulava toda a tropa. Por vezes, antes do vilarejo ser tomado pelos portugueses, era lá na igreja que os homens eram preparados para o combate.

 "Lá, ele reuniu cerca de 400 homens. O padre orientava e preparava-os, equipando com armas. Assim que surgia uma embarcação portuguesa, ele logo mandava um cabra, um escravo, avisar ao governo de Cachoeira", afirma o professor.

Tradição A luta atual das caretas, séculos depois, conta o professor, é outra: manter a tradição viva e fazer com que as mulheres saubarenses sejam reconhecidas, assim como Maria Felipa e Maria Quitéria foram.

Em Salvador, metade do grupo desfilou, a outra ficou em Saubara. A mais velha delas tem 90 anos. Na sua ausência, é a marisqueira Magnólia Souza, 70, a mais antiga. "Vamos nos manter resgatando uma parte da nossa história. Estamos aqui, fortes, para guerrear sempre, lutando como os meus antepassados lutaram", diz a marisqueira.