Haja trio, haja chão: momentos icônicos de 40 anos de Carnaval

Folia baiana sofreu reviravoltas em quatro décadas: na música, na indústria e na forma das pessoas curtirem a festa

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  • Ivan Dias Marques

Publicado em 15 de janeiro de 2019 às 02:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arquivo CORREIO

Desde que Charles Darwin (1809-1882) o conheceu, em 1832, o Carnaval da Bahia causa dois tipos de sensação a quem o vê: deslumbramento ou estranheza.

Neste sentido, nesses 40 anos em que o CORREIO registrou a festa, poucas peculiaridades baianas mudaram tanto. Pior: não só de forma cíclica, como também de maneira incontrolável e imprevisível. Ah, e ainda existem personagens importantes que pouco mudaram, fazendo questão de manterem-se tradicionais, como alguns blocos afros.

Mas há três fatores fundamentais para entender as mudanças do Carnaval nessas quatro décadas: a música, a indústria da festa e a forma como as pessoas curtem a folia. As três são complementares e interdependentes.

Logo no segundo ano de CORREIO, em 1980, o Carnaval passa por mudanças fundamentais até hoje: Olodum e Malê Debalê desfilam pela primeira vez, o Ilê Aiyê fez sua primeira eleição de Deusa do Ébano e o bloco Traz os Montes inaugura seu novo sistema de som, diferente de qualquer coisa vista antes numa festa que ainda bebia muito na fonte do frevo, das marchinhas e dos bailes em clubes e hotéis.

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Estes últimos foram deixando de existir com força ao longo desses anos, à medida que o Carnaval de rua ganhava força.

A busca por ser maior e melhor impulsionou a indústria do áudio e imponência dos trios elétricos. Cinco anos depois, Luiz Caldas estourava no país todo e a edição da Quarta-feira de Cinzas de 86 do CORREIO decreta: não precisamos mais importar estrelas. Era o Carnaval de Luiz e de Sarajane.

Ali, acreditem, algo já incomodava o público: as cordas dos blocos iam surgindo.  Bandas nasceram e acabaram, assim como rivalidades de blocos e bailes (sim, rolava muito). A mortalha virou abadá, que virou só uma camisa, como é hoje.

Para contar a história desses 40 anos, reunimos fatos marcantes em quatro grupos: Estreias, Estrelas Mundiais, (Re)Encontros e Vanguarda. Mesmo com tantas mudanças, que levaram a festa a ser destaque no mundo todo, algo se mantém: a alegria com a qual o baiano se entrega ao Carnaval. Isso ninguém faz como a gente.

ESTREIAS‘Baiano não nasce, estreia’. A frase denota bem que não temos medo de ter iniciativa. Listamos algumas das estreias mais marcantes nos últimos 40 anos de Carnaval.

1980 e os blocos afros Olodum e Malê Debalê. A primeira Deusa do Ébano do Ilê. O Carnaval  não seria mais o mesmo após 1980, um marco na herança africana da festa mais popular do país.

E o Carnaval desceu a ladeira... O primeiro Carnaval, de fato, na Barra aconteceu em 1983. O então prefeito Renan Baleeiro quis descentralizar a festa do Centro da cidade e mandou construir um palco no Farol da Barra.

Mudando de cor há mais de 20 anos Em 1990, começou uma parceria que duraria 24 anos – até os dias atuais, no coração de seus foliões. Chiclete com Banana e Camaleão firmaram um acordo que mudaria o Carnaval da Bahia. Ivete Sangalo em sua estreia como cantora solo, no Carnaval de 2000 (Foto: Márcio Costa e Silva) Duas estreias numa mesma folia O ano de 2000 marcou duas estreias históricas no Carnaval: de um lado, uma estrela em franca ascensão e que deixara sua banda no ano anterior. Do outro, uma revelação que mudou um estilo de fazer pagode e, principalmente, de cantar o pagode genuinamente baiano.  Aos 27 anos, Ivete Sangalo fazia seu primeiro Carnaval solo, puxando o Me Abraça e o Cerveja & Cia. Já o Harmonia do Samba, com Xandy (ainda com um ‘d’) arrancava suspiros e instigava a curiosidade até de Caetano Veloso.

A volta do povo O povo pedia mais trios sem corda e mais espaço na festa  e, em 2014, a prefeitura atendeu, criando o Furdunço. No primeiro ano, era uma fila de trios e entidades no meio da festa. A partir de 2015, virou um pré-Carnaval, mas mantendo sua essência popular.  Igor Kannário e a multidão que o seguia na festa de 2015 (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) É tudo da periferia No mesmo ano da mudança do Furdunço, mais uma estreia de peso no Carnaval: Igor Kannário, o Príncipe do Gueto. Já conhecido – e amado – nas camadas populares, o cantor arrastou uma multidão, com letras politizadas e que falam da periferia.

ESTRELAS MUNDIAISQuando Darwin conheceu o Carnaval da Bahia, nem havia publicado a Teoria da Evolução. Mas, vamos dizer, ele abriu as portas para outras estrelas mundiais virem depois.

Islândia com dendê? Em 2004, a cantora islandesa Björk veio acompanhar as intervenções artísticas do marido, Matthew Barney, no Cortejo Afro. Dançou um pouco, tirou fotos e, dizem, se deu mal com um acarajé. Quincy Jones, Bono Vox, Flora Gil, Gilberto Gil e The Edge no Camarote 2222 (Foto: Divulgação) Um 'Beautiful Day' em Salvador Dois anos depois de Björk, o Carnaval bombou. Primeiro com a presença de Bono Vox e The Edge (do U2), com direito a canja de dentro do Camarote Expresso 2222, e do megaprodutor Quincy Jones. Depois, outro músico famoso, o DJ inglês FatBoy Slim transformou as ruas do Circuito Barra/Ondina em uma rave.

O papa é pop, mas o arcebispo é axé Um ano depois de trazer uma grande estrela da música, Gilberto Gil convidou o arcebispo anglicano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984 e um dos principais ativistas contra o apartheid sul-africano para seu camarote.  Psy e Claudia Leitte dividem vocais durante passagem do sul-coreano pelo Carnaval (Foto: Robson Mendes/CORREIO) 'Opa', Gangnan Style! Foi só um sucesso, mas que sucesso! O sul-coreano Psy era o cara mais bombado do planeta com seu Gangnan Style em 2013, quando cantou ao lado de Claudia Leitte no trio da estrela baiana. Integrante do Ilê Aiyê produz turbante na cabeça da modelo Naomi Campbell (Foto: Antônio Queirós/CORREIO) Rei, Rainha e a deusa Naomi Outras estrelas, talvez com menor impacto na festa e nos foliões, também passaram por aqui: Sharon Stone, Naomi Campbell, o rei Gustavo e a rainha Sílva, da Suécia, e o diretor de cinema Spike Lee, que gravou parte de um documentário no Carnaval baiano.

(RE)ENCONTROSO Carnaval é um momento de encontros, reencontros e, por que não, desencontros. Quem nunca se perdeu (em vários sentidos) na folia? Tem gente que encontrou seu grande amor atrás de um trio-elétrico. Mas, além do chão, os encontros e reencontros acontecem também nos palcos dos trios e provocaram emoção em artistas e público. Ao longo das últimas quatro décadas, os encontros de trios, estrelas e personagens importantes da festa entraram para a história.

Um encontro de sanfonas bom demais Em 1986, o compositor e produtor Gereba promoveu um encontro conhecido no São João, mas inédito para o Carnaval: Luiz Gonzaga e Dominguinhos em cima de um trio, no Carnaforró. E o Farol da Barra virou festa junina.

Pra se guardar debaixo de sete chaves Já no ano de 1998, o cantor e compositor Milton Nascimento assistia o Carnaval na sacada de um camarote em Ondina. Ao passar pelo artista, Carlinhos Brown desceu do trio, ajoelhou-se e fez uma reverência a Bituca.  Acabou realizando um emocionante dueto com Milton no clássico Canção da América. Iluminada, fobica de 1950 'desfila' no Campo Grande à frente do trio Armandinho, Dodô & Osmar (Foto: Welton Araújo/CORREIO) Um ícone do Carnaval de volta à festa que ‘criou’ Osmar Macedo, um dos dois pais do trio-elétrico, faleceu em 1997. No Carnaval do ano seguinte, seus herdeiros trouxeram de volta a velha fobica que, em 1950, encantou a capital. Ela ficou posicionada num caminhão à frente do trio Armandinho, Dodô & Osmar. Foi o reencontro do grande precursor do trio com o lugar onde mais fez sucesso: as ruas de Salvador. Gilberto Gil, Maria Betânia, Gal Costa e Caetano Veloso: Doces Bárbaros se reencontram no Carnaval de 2001 (Foto: Márcio Costa e Silva/CORREIO) Os quatro maestros da Bahia Quem diria que a estreia de Maria Bethânia no Carnaval só aconteceria em 2001? E foi em grande estilo, num reencontro com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Os Doces Bárbaros participaram pela primeira vez da festa juntos e dividiram o trio do Bloco da Cidade com Danilo e Alice Caymmi, Margareth Menezes, entre outros, homenageando o mestre Dorival Caymmi.

Mestres afros para homenagear a África Em 2002, na abertura do Carnaval, um encontro de mestres afros: Carlinhos Brown e Neguinho do Samba comandam 300 percussionistas para homenagear a África. Márcio Victor chora após cantar Firme e Forte, na sua volta ao Carnaval menos de 24 horas depois de uma cirurgia de apendicite (Foto: Marina Silva/CORREIO) Dor, lágrimas e reencontro com os foliões Em 2015, um dia após desfilar na Barra-Ondina, o cantor Márcio Victor, do Psirico, dá entrada num hospital. É operado de apendicite mas, menos de 24 horas depois, numa recuperação incrível, reencontra seu público no Carnaval. Ao cantar Firme e Forte, chorou. “Eu sou guerreiro”, disse.

VANGUARDAEstar na vanguarda é estar um passo à frente, é não ter medo de inventar e arriscar. Muitos artistas e empresários da música precisaram e tiveram espaço para inventar nesses 40 anos de Carnaval, afinal foi com uma invenção de Dodô & Osmar, a fobica, que a festa ganhou grande proporção popular.

Em alto e bom som para todos O técnico de som Wilson Marques teve uma ideia revolucionária para o Carnaval de 1980: encher a lateral do trio-elétrico de caixas de som e transistorizar o áudio da banda Scorpius, que se tornaria depois o Chiclete com Banana, no bloco Traz os Montes. O Carnaval jamais seria o mesmo. Luiz Caldas em ação no Carnaval de 1986 (Foto: Carlos Casaes/CORREIO) O ritmo que revolucionou Ser vanguarda é inventar um ritmo? Sim. Foi o que fez Luiz Caldas em 1985, com seu deboche (depois fricote e axé music). A partir do Carnaval do ano seguinte, a Bahia era outra e o Brasil veio na carona.

Um novo modo de se vestir Em 1993, o publicitário Pedrinho Rocha troca de vez as mortalhas por uma fantasia para deixar o folião mais à vontade: o bloco Eva traz o primeiro abadá do Carnaval.

Pele pintada e atrás do arrastão Inventar é o que mais Carlinhos Brown faz. Sua invenção mais significante para o Carnaval contou com uma trupe tocando percussão na frente de um trio-elétrico com dançarinas nas laterais e uma banda com vários vocalistas. Todo mundo pintado com traços brancos. A Timbalada e o arrastão deslumbraram a todos a partir de 1993.  Daniela desfila com o Crocodilo na Barra: estrela pioneira (Foto: José Simões/CORREIO) Daniela à frente do tempo Daniela Mercury é outra que sempre esteve na vanguarda no Carnaval da Bahia. Por muitas vezes até incompreendida, como quando trouxe a música eletrônica pra festa, em 2000. Em outros, La Mercury foi pioneira: em 96 foi a primeira estrela a adotar a Barra-Ondina como circuito oficial, com o Crocodilo, e ainda lançou seu camarote oficial.