Herói da Palestina: veja por onde anda Amilton, tratorista que se recusou a demolir casas

Dezesseis anos depois, CORREIO mostra como estão ele e as famílias

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  • Thais Borges

Publicado em 20 de janeiro de 2019 às 03:24

- Atualizado há um ano

. Crédito: Seu Amilton é reconhecido nas ruas até hoje (Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

Na ladeira da Rua Santa Maria, onde carros não passam e moradores sobem uma escadaria de concreto, a casa de número 1 abriga aquele que talvez seja o morador mais famoso da Mangabeira, em Cajazeiras 8. “A casa do tratorista? Fica logo ali”, indicava uma senhora, na porta de uma loja de roupas femininas. 

Logo se via que o ‘tratorista’ não era qualquer pessoa. Foi por essa alcunha que ficou mais conhecido o aposentado Amilton dos Santos, 68 anos, que, há pouco mais de 15 anos, tomou uma decisão que mudou a vida de duas famílias e ainda lhe trouxe uma fama repentina. No dia 2 de maio de 2003, ele se recusou a cumprir uma ordem judicial que mandava demolir duas casas na Palestina – a da dona Telma Sueli dos Santos Sena e de Ana Célia Ribeiro. 

As imagens de Seu Amilton emocionado em cima de uma retroescavadeira, diante de dezenas de policiais militares e de um oficial de justiça, correram o Brasil. Foi homenageado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ganhou prêmios e conheceu os apresentadores Luciano Huck e Gugu. Virou até inspiração para o primeiro capítulo da novela América (2005), de Gloria Perez. No folhetim, o personagem Mariano, vivido por Paulo Goulart, também se recusa a demolir uma casa. 

Sem luxos e sem afetações, o tratorista da vida real vive hoje em um imóvel de 64 metros quadrados. Só uma metade foi totalmente construída – inclusive, com os R$ 10 mil que ganhou após a participação no programa de Huck. A outra metade da casa, assim como a laje, ficou só nos tijolos. Seu Amilton construiu a casa onde vive hoje depois de receber uma doação em um programa de televisão (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) “Tive que parar porque faltou verba. Mas, com fé em Deus, esse ano eu termino”, diz Seu Amilton, diante de uma miniatura de trator em madeira.Ganhara de uma vizinha, anos atrás. 

Reconhecido até hoje nas ruas, não consegue lembrar de uma única vez em que visitou uma obra e que alguém não tenha perguntado: seria ele o tratorista da Palestina? Mesmo assim, diz que nunca quis capitalizar com o episódio. Chegou a se separar de uma ex-companheira, com quem vivia em 2003, por divergências na forma como lidava com a fama repentina. 

A mulher queria cobrar pelas aparições ou até pelas menções a Amilton. Ele não concordava. Em 2004, chegou a se lançar como candidato a vereador em Salvador pelo PSDB. Conseguiu 1.224 votos, mas não chegou a ser eleito. Segundo ele, só houve candidatura por insistência de um líder político da cidade. Depois, não quis mais saber. 

A resistência Tanto tempo depois, aquela sexta-feira, 2 de maio de 2003, ainda vem à mente cheia de detalhes. Sem grandes dificuldades, Seu Amilton descreve todo o dia: desde o momento em que chegou ao trabalho, na empresa JLD, às 8h da manhã, até quando soube que faria uma demolição naquele dia, logo após o horário de almoço. Até então, nada novo sob o Sol. Demolir casas fazia parte de sua rotina. 

O chefe, um senhor conhecido como ‘Branco’, tinha adiantado um pouco do que encontraria. “É para derrubar uns barracos que estão lá na Valéria”, teria dito, referindo-se à Palestina. Só que nenhuma experiência anterior o preparara para o que estava para acontecer. Nunca tinha, sequer, encontrado pessoas junto às casas que demolira no passado. 

Naquele mesmo dia, algumas horas mais tarde, Amilton se deparou com uma multidão que protestava, policiais militares que tentavam conter a população, algumas dezenas de jornalistas e duas famílias desesperadas na Palestina. Ligou, então, para o patrão. Queria avisar que, daquele jeito, não conseguiria completar o serviço. “Rapaz, se vire aí”, foi a resposta que ouviu. 

Seu Amilton ligou o trator e chegou perto da casa – primeiro, a de dona Telma, que seria demolida por inteiro. Com a retroescavadeira ligada, recuou. Desistiu uma, duas, três, quatro vezes. Mas não voltou a se aproximar dos imóveis. Passou mal, foi socorrido. Mandaram que o algemassem e que o levassem à delegacia. Depois da repercussão, foi liberado.  Amilton (de azul) se identificou com a história de dona Telma (de branco) (Foto: Márcio Costa e Silva/Arquivo CORREIO) “Eu não tinha uma casa e não queria que qualquer outra pessoa não tivesse. Como é que vai mandar uma máquina para derrubar a casa de uma pobre coitada? Graças a Deus, ela ficou com a casa dela lá”, diz, referindo-se a Telma.Na época, Seu Amilton realmente não tinha uma casa. Morava com a então companheira, na Boca do Rio. A casa era dela. 

Por isso mesmo, quando recebeu R$ 24 mil após uma participação no Domingo Legal, antigo programa do apresentador Gugu, usou a quantia para reformar o imóvel da mulher. Após a separação, porém, a casa continuou com ela.  

Emocionado, seu Amilton explica porque não conseguiu seguir em frente. “Aquilo me doeu o coração. Já pensou você chegar do trabalho e não ter uma casa para colocar a cabeça no travesseiro? Quando eu via, eu desistia. A gente é operador e, numa coisa assim, penso que a gente tem olhar cada situação”, diz. 

Desapropriação Naquele mesmo dia, o hoje juiz aposentado Cláudio Fernandes de Oliveira recebeu uma ligação. Era o oficial de justiça Carlos Cerqueira, que telefonava para contar que, até aquele momento, a ordem não tinha sido cumprida. Era Claudio o juiz responsável. “Eu determinei que suspendesse para ver o que poderia fazer. Nesse ínterim, o prefeito de Salvador, que era (Antônio) Imbassahy, me ligou um dia à noite. Me perguntou se poderia interferir no processo, que havia conversado com o proprietário (do terreno), que estava de acordo. Só dependia do juiz. O importante, para mim, era resolver”, contou o juiz, por telefone, ao CORREIO. De acordo com ele, o processo já estava em andamento quando foi transferido para a antiga 12ª Vara dos Feitos Cíveis, vindo de Barreiras, no Oeste do estado. Antecessora dele na vara, a atual desembargadora Silva Zarif era quem tinha julgado o processo movido pelo engenheiro Adolfo Stelmach, dono do terreno que solicitava reintegração da posse. 

Após alguns recursos, o processo chegou até o Supremo Tribunal Federal (STF), que manteve a decisão da juíza. “O processo retornou para a sentença ser cumprida e caiu em minhas mãos. Apenas dei andamento. Quando a prefeitura resolveu daquela forma, foi louvável, porque era uma família que realmente tinha um déficit habitacional e saiu todo mundo feliz”, diz o juiz Cláudio Fernandes, referindo-se à desapropriação do terreno, pela administração municipal. 

Antes do episódio com o tratorista Amilton, o dono do terreno pedia R$ 25 mil como pagamento para que as famílias ficassem com o terreno. À Justiça, as famílias declararam não ter condições de pagar esse valor. Depois da situação, porém, a prefeitura desapropriou o espaço e concedeu a área às famílias. 

O deputado federal não reeleito Antônio Imbassahy avalia que, naquela ocasião, a atitude de Seu Amilton sensibilizou os órgãos da prefeitura e a própria sociedade.“Foi uma coisa de grande significado porque ele tinha identidade com o que estava acontecendo. Acho que foi um caso comovente e revelou a dramaticidade das pessoas humildes que sobrevivem com muita dificuldade. Esse foi um caso que simbolizou isso”, disse Imbassahy. Mesma empresa Seu Amilton trabalhou, até se aposentar, em 2016, na mesma empresa. Diz nunca ter tido medo de ser demitido, nem quando quase foi preso. Mesmo após a aposentadoria, contudo, vez ou outra é chamado para pequenos serviços por lá. Trabalha pelo valor de uma diária. 

Para ele, é difícil se distanciar do ofício que desempenhou por quase toda a vida. Aprendeu a ser tratorista ainda na década de 1970, logo depois de ter chegado a Salvador, em 1969. Aos 18 anos, saiu de São Roque do Paraguaçu, distrito de Maragojipe, no Recôncavo baiano, para vir tentar a vida na capital.

"Eu apanhava muito de meu pai. Tinha um tio que morava aqui na Valéria, então vim, sozinho. Passei um mês e meio com ele, depois continuei”, lembra. 

Pai de oito filhos, atualmente mora sozinho. Cada um dos rebentos – o mais novo, com 32 anos – seguiu seu caminho e já são 37 netos e sete bisnetos. Depois de se separar, viveu com outra mulher, na Fazenda Grande do Retiro. Os dois se separaram em 2016 e, desde então, não vive com ninguém na casa da Rua Santa Maria. 

A casa onde mora é sua mesmo. Desde 2016, tem uma escritura que comprova a posse. Lá, gosta de ficar assistindo televisão – o único luxo da casa é um aparelho Samsung de resolução 4K. “Antigamente, até gostava de ir para uma seresta na Ribeira, em Itapuã. Mas do jeito que as coisas estão hoje, prefiro mesmo ficar em casa”. 

Nunca entrou na casa de dona Telma, de quem continua amigo até hoje.

A Palestina continua A merendeira da Escola Municipal da Palestina ainda mora no mesmo imóvel – o número 127-E – que foi pivô da confusão. “Daqui, só saio quando morrer”, explica dona Telma, já com 56 anos.O imóvel, contudo, passou por algumas reformas. O andar de cima, que não existia, foi construído. No térreo, o marido adaptou o espaço para criar uma oficina mecânica. Das 13 pessoas que moravam na época da ameaça de demolição, restaram cinco – além do casal, um filho, uma nora e um neto. 

As donas das casas Para dona Telma, as imagens daquele dia também continuam claras. “Não esqueço nunca”, diz. O que nem todo mundo sabe é que foi graças à uma estratégia de dona Telma que as casas ficaram intactas. Dois dias antes, no dia 30 de abril, a merendeira avistou duas pessoas observando sua casa. Uma delas era o engenheiro Adolfo Stelmach, dono do terreno e que tinha entrado na Justiça para solicitar a reintegração de posse.  A casa de dona Telma (de amarelo) ganhou mais um andar e uma oficina; a de dona Ana Célia (branca) também tem mais um andar (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) A outra era um desconhecido. Quando abordou os dois, a justificativa foi de que estavam observando a área para comprar imóveis. Pouco depois, em particular, o desconhecido revelou que, dali a dois dias – o dia seguinte, 1º de maio, era feriado pelo Dia do Trabalho –, as casas seriam demolidas. 

Dona Telma lembra de ter saído para procurar informações, mas não voltou com nada que a ajudasse. No dia seguinte, a quinta-feira, teve uma das ideias que acredita que mais influenciou o destino: decidiu chamar a imprensa. Ligou para alguns veículos de comunicação da cidade e relatou o que estava para acontecer. “No dia seguinte, um deles me ligou, perguntando se ia ter mesmo. Só que, quando acordei, já estava cheio de polícia e oficial de justiça aqui. Toda hora chegava gente do bairro, vindo me apoiar. Mas o que ajudou foi que tive sabedoria de chamar a imprensa”, reflete Telma. Seu Amilton, diz ela, foi uma pessoa muito importante em sua vida. “Se não fosse ele, não estaria aqui. Construí minha casa aqui, tudo aqui. Foi uma luta e tanto”. 

Na casa ao lado, de número 125-E, a cuidadora de idosos Ana Célia Ribeiro, 65 anos, ainda vive com praticamente as mesmas pessoas que estiveram a ponto de perder o imóvel, em 2003. Da casa dela, seria demolida apenas uma parte – aproximadamente um metro de distância, contando do fim da casa de Telma. 

No dia 2 de maio, ela estava na casa de uma nora quando soube da notícia. Mesmo assim, no dia segunte, tratou de agradecer a Seu Hamilton.“Foi mais na casa de Telma, porque aqui ficou ainda na ameaça. Mas a decisão que ele tomou em não derrubar foi boa para todos nós. Ele protegeu a casa dela e a minha”, disse Ana Célia, que também nunca pensou em sair de lá. O filho dela, Edmilson Neves, 46, também elogiou a atitude do tratorista. Ele foi uma das pessoas que se mobilizou para impedir a demolição, em 2003. “Aquele camarada, Amilton, fez um ato de humanidade. Isso é indiscutível. E nós, depois de passar por tudo aqui, ficamos aqui. De maneira nenhuma que podíamos sair, depois de ter comprado a briga”.  Seu Amilton (de azul) é amigo da família de dona Telma até hoje (Foto: Márcio Costa e Silva/Arquivo CORREIO) Jornalismo Para quem acompanhou o drama das famílias e de Seu Amilton, o dia 2 de maio também é inesquecível. O primeiro repórter do CORREIO a cobrir o caso foi o jornalista Marcos Cazé, que trabalhava na editoria Aqui Salvador, na época. “Eu lembro que tinha uma revolta. As pessoas que estavam envolvidas lá não queriam sair, queriam proteger. E você olhava para ele (Amilton) e via que ele tinha medo de perder o emprego, mas dizia que não como fazer”, opinou Cazé. Para o jornalista, que já trabalhava no jornal há seis anos, esse caso mostra como o jornalismo pode fazer diferença. “O que a gente faz pode mudar a história. A cobertura do jornal e da TV ajudou bastante, para que tudo se resolvesse de outra forma.    No dia seguinte, foi a repórter Renata Matos quem teve a missão de acompanhar a visita de Seu Amilton às famílias da Palestina. Ela lembra que todos demonstravam gratidão, quando o tratorista chegou. 

“Seu Amilton virou um herói. Ele se colocou no lugar e ficou muito emocionado. É um desses assuntos que a gente não esquece nunca. Já tem muito tempo que não trabalho mais como repórter, mas esse é um assunto que marcou”, disse.

*Colaboraram Larissa Silva e Maria Clara Gibson, integrantes da 13ª turma do programa Correio de Futuro*, sob supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier.