Igreja da Graça está 70% restaurada e reabertura deve acontecer em 2020

Trata-se da primeira igreja edificada em Salvador. Templo guarda restos mortais de Catarina Paraguaçu e Júlia Fetal

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

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Foto: Betto Jr/CORREIO Do lado direito, o jazigo de uma jovem da alta sociedade assassinada com uma bala de ouro. Do lado esquerdo, os restos mortais de Catarina Paraguaçu, a índia que, junto com Caramuru, formou a primeira família cristã do Brasil. Ao centro, no altar-mor, uma imagem de Nossa Senhora encontrada numa nau naufragada em 1530 na Ilha de Boipeba. Toda essa riqueza histórica compõe o interior da neoclássica Igreja de Nossa Senhora da Graça, no nº 133 da Avenida Princesa Leopoldina. 

Doada pela índia à Ordem Beneditina, a edificação é datada de 1535 e existia antes mesmo de Salvador ser oficializada como cidade. Ela é, portanto, a mais antiga igreja construída na capital baiana. Há quatro anos, uma obra de restauração artística dela foi iniciada e, agora, está a 30% de ser concluída. 

A construção é anexa ao Mosteiro da Graça, que recebeu, na noite desta quarta-feira (23), a exposição “Minha Nossa Senhora – Súplica e Louvação”, com 31 quadros assinados pelo artista feirense Luiz Humberto Carvalho. As peças retratam diversas nuances de Maria Mãe de Deus e estão à venda por R$ 1.500, cada, para ajudar a incentivar atividades culturais e uma segunda obra, de reparo do claustro e outras áreas comuns.

Além da Igreja, o mosteiro abriga a Faculdade Livre da Terceira Idade, uma sede da Associação Alcoólicos Anônimos (AAA) e também um projeto de memorial de Catarina Paraguaçu, considerada a primeira pessoa brasileira a ser batizada. Mulher do náufrago português Diogo Álvares, o Caramuru, foi ela quem mandou erguer a construção. 

Segundo José Dirson Argolo, restaurador da igreja, a ordem de subir as paredes do que viria a ser o mosteiro surgiu a partir de um sonho da índia, em que uma mulher lhe aparecia com uma criança. “Ela então vai atrás de Caramuru e implora para que ele procure essa tal mulher”, narra. É aí que, meses depois, indígenas da Ilha de Boipeba, no município de Cairu, descobrem, dentro de um caixote, uma figura de Nossa Senhora, que é a mesma que até hoje ocupa o altar-mor da abadia. Uma imagem de Nossa Senhora encontrada numa nau naufragada em 1530 ocupa o altar-mor da abadia (Foto: Betto Jr/CORREIO) Muitos anos mais tarde, a pedido de um chefe da Igreja, em 1921, essa representação da santa encontrada pelos índios foi modificada por Pedro Ferreira, um dos últimos grandes escultores do Recôncavo Baiano. No entanto, o artista não tinha formação em restauro e transformou aquela imagem do século XVI numa coisa moderna. 

Biógrafo do restaurador, Dirson contou que encontrou um documento em que, antes de morrer, Ferreira desabafava sobre seu arrependimento em ter feito a modificação que descaracterizou a santa. De qualquer maneira, é possível que a construção seja o primeiro Templo Mariano do país, conforme informações do historiador e coordenador cultural da abadia, José Raimundo Lima. 

Mato-grossense e capelão do mosteiro há oito meses, Dom Ângelo Alves contou que essas histórias fascinantes que remontam a origem do Brasil só chegaram ao seu conhecimento recentemente.“Catarina abriu as portas para que a Mãe de Deus pudesse também ser mãe dos brasileiros. Ela foi uma pessoa especial para os beneditinos. Quando ela doou as terras, foi levantada uma pequena capelinha que fez surgir uma comunidade monástica e que virou esse complexo”, comentou.O capelão notou ainda que muitas pessoas passam pela igreja sem se dar conta de que ela carrega todas essas páginas de história. 

Ao mostrar a tela ‘O Sonho de Catarina’, que orna o teto da nave da igreja, num salto, José Raimundo revelou que não se conforma com esse desconhecimento. “Já imaginou essa história na Europa, o sucesso que seria? Um fidalgo português se apaixona por uma índia e casa com ela!”, proferiu. 

Bala de ouro Inclusive, a outra senhora, que um dia quase foi casada e hoje descansa no jazigo do lado direito da igreja também tem o que contar. As características da trágica história da jovem Júlia Fetal, sepultada na igreja, inspirou a novela Espelho da Vida, exibida neste ano pela TV Globo.

Conta-se que ela tinha 20 anos quando foi atingida por um tiro no peito, disparado pelo próprio noivo, um professor. Reza a lenda que, supostamente enciumado, o homem usou uma bala de ouro, feita com o anel de noivado derretido, e matou a moça que era filha de um importante negociante português.

Neste resgate artístico do espaço religioso que conserva a memória destas duas moças e, sobretudo, do Brasil foram investidos cerca de R$ 2 milhões em restauração nos últimos quatro anos de obras. A finalização da reforma está orçada em R$ 300 mil, que ainda faltam ser creditados na conta da Igreja pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), que financia a obra via Lei Rouanet. Para a restauração, foram investidos cerca de R$ 2 milhões e a finalização está orçada em R$ 300 mil (Foto: Betto Jr/CORREIO) Professora aposentada e atualmente aluna da Faculdade Livre da Terceira Idade, Luzia De Castro Marques ainda lembra de quando a igreja estava aberta. “Tivemos uma aula inaugural lá com Francisco Senna e aí foi que eu fui saber, à essa altura da vida, que era lá que estavam os restos mortais de Catarina Paraguaçu. Foi uma aula brilhante!”, recordou.

Antes da restauração a conservação do templo era considerada ‘extremamente precária’. Dirson Argolo lembrou que o altar-mor de Nossa Senhora estava infestado de cupins. A imagem sacra da santa estava comprometida, sobretudo as figuras dos quatro evangelistas que ornamentam o altar. “Salvador é uma cidade quente e úmida. Esse clima favorece o ataque de insetos e microorganismos. O tráfego de veículos daquela região gera monóxido de carbono, o que provocou muita crosta negra nas estruturas e monumentos”, rememorou.Após os caprichos dos restauradores, já ficaram prontos o teto e a tribuna da nave, balcões e altar-mor. O templo será reaberto em 2020, ainda sem mês definido.

Outros restauros Conforme o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Salvador, oito igrejas foram restauradas nos últimos anos. São elas: a Igreja do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana, Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Domingos Gusmão, Receptivo da Igreja da Conceição da Praia, Catedral Basílica de Salvador, Igreja de São Pedro dos Clérigos, Igreja do Corpo Santo e Igreja do Rosário dos Pretos. Atualmente, está em andamento a obra de recuperação da Igreja de Nossa Senhora da Saúde.