Igrejas de Salvador passam décadas à espera de reparos e ameaçam ruir

Entenda os obstáculos para a realização das obras e veja fotos de templos ameaçados

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 7 de março de 2022 às 05:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Paula Fróes/CORREIO
Igreja sede da Ordem Terceira de São Francisco por Foto: Arisson Marinho/CORREIO

Salvador tem mais de 600 igrejas segundo a Arquidiocese e as mais antigas delas ajudam a contar a história da cidade. Mas nem todas estão em perfeito estado, como deveriam. A matriz da Paróquia Nossa Senhora da Penha está há mais de 20 anos esperando por restauro; a Igreja e Cemitério de Nossa Senhora do Pilar tem processo se arrastando desde 2012. E algumas delas, como Igreja de Nossa Senhora das Neves e a Capela de São Miguel, estão com partes desabadas e, por isso, precisaram ser interditadas. 

A Capela de São Miguel, no Pelourinho, faz parte da Ordem Terceira de São Francisco e sua construção remonta do início do século XVIII, trazendo diversos elementos provenientes de Lisboa, em Portugal. O local está fechado desde ao menos 2015 e foi interditado pela prefeitura de Salvador em 2019, quando parte do telhado desabou. 

“Quando eu cheguei à Ordem, em 2015, ela já estava fechada por conta do risco, até retiramos as imagens sacras de lá. Chegamos a fazer missas no Dia de São Miguel, mas do lado de fora, missa campal. E esse tempo todo estamos preocupados porque o que faz um imóvel ruir é justamente a água penetrando nas paredes e, sem telhado, a igreja fica muito vulnerável nesse sentido”, conta o presidente da Ordem Terceira de São Francisco, Jayme Baleeiro Neto. 

Ele diz que desde 2016 a situação foi notificada e o projeto de restauro está feito e aprovado. Desde 2020, um pedido de obtenção de recursos está em andamento no Fundo Nacional de Direitos Difusos, do Ministério da Justiça. “Estamos esperançosos porque este ano temos o bicentenário da independência do Brasil, talvez a gente tenha um movimento de restaurar os patrimônios. A gente tem como prioridade o telhado, que caiu, mas depois temos outras coisas também para serem feitas. Mas tudo por partes porque os recursos são limitados, nem para o telhado chegou ainda e só aí são cerca de R$700 mil”, coloca Baleeiro Neto.

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A Igreja sede da Ordem Terceira de São Francisco está aberta ao público, mas também precisa de obras. O telhado está comprometido e, no último dia 4, com as chuvas que atingiram Salvador, uma parte dele foi ao chão. Além dessas, outras demandas. O painel de azulejos portugueses passou por obra há 20 anos, mas, como o serviço não atingiu a raiz do problema e os azulejos não receberam manutenção, eles logo começaram a descascar novamente. 

“Lá temos os azulejos que retratam Lisboa anterior ao terremoto de 1755 que já estão descascando. A igreja precisa da recuperação desse painel dos azulejos, o portal da frente da igreja é de pedra arenito e está deteriorado, o portão central da igreja está sem acesso, e a rede de incêndio precisa ser revista”, diz o presidente. 

Para a sede, o pedido de socorro foi feito em 2015 e já existe um projeto aprovado pela Lei Rouanet, mas falta uma empresa patrocinadora. Na época da elaboração, em 2019, o projeto custava  R$4,5 milhões. “Nossa dificuldade se dá porque não somos algo como a Basílica de Senhor do Bonfim ou Conceição da Praia, que suscitam muita devoção, têm muitas missas. A gente não tem paróquia, não tem aqueles devotos que frequentam, então não tem essa força da comunidade para arrecadação de recursos e isso também afasta patrocínio privado”, diz Baleeiro Neto. “A gente cobra R$ 10 pela visita. Se você for comparar com um lanche, um ingresso de cinema, é um valor quase insignificante. Mas as pessoas resistem a pagar esse valor para conhecer uma igreja aqui. E são as mesmas pessoas que vão para a Europa só para ver as igrejas, para visitar o mesmo perfil de patrimônio e às vezes coisas com menor valor histórico do que temos aqui do lado de casa. Não temos isso de valorizar o que é nosso, o que é uma grande besteira porque quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai”, destaca o presidente da Ordem Terceira de São Francisco. A Igreja de Nossa Senhora das Neves, em Ilha de Maré, está há tanto tempo sem missas que as integrantes do grupo responsável pela manutenção já nem sabem mais quando elas pararam de acontecer. Ela é uma das mais antigas do Brasil e foi inaugurada em 1552. O local não está totalmente interditado, mas a parte elevada, onde ficava o coro durante as missas, ameaça desabar. Uma parte do telhado e das paredes da sacristia já foram abaixo e, graças à ajuda da comunidade local, puderam ser reparados. Mas ainda há muito a ser feito. A iluminação é precária, as paredes estão cheias de infiltração, fazendo com que a pintura deixe a desejar. 

Atualmente, tramita no Iphan a elaboração e aprovação de um projeto executivo de arquitetura, engenharia e restauração para a Igreja de Nossa Senhora das Neves. “O Iphan é o responsável pela reforma, mas são muitas igrejas no Brasil todo precisando de restauração, aí temos essa demora. Entramos na fila há cerca de três anos. Por fora do Iphan, tentamos parcerias para arrecadar recursos, mas a prioridade é sempre para construção ou obras sociais”, diz o Padre Edilson Bispo, membro da Comissão Arquidiocesana de Bens Culturais da Igreja. 

A Matriz da Paróquia Nossa Senhora da Penha, junto com o Palácio de Verão dos Arcebispos, que fica na Ribeira, está em processo para obras há mais de 20 anos. Neste momento, nem o projeto de restauro está pronto. O templo foi construído em 1742, no estilo barroco, e também é tombado pelo Iphan.  Igreja da Penha, na Ribeira, necessita de reforma (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)   “O mais urgente era a obra no passadiço. Aí a comunidade fez uma campanha e reuniu R$ 60 mil, então conseguimos fazer. Agora, a igreja ainda precisa de restauração no telhado, altares, piso, portas e janelas. Tem uma minuta do Iphan preparada para lançar licitação para empresas fazerem o projeto. Aí depois de pronto ele tem que ser aprovado e vamos para o segundo processo, que é a captação de recursos para a obra em si”, diz o Irmão Jorge Mendes, vice-coordenador da Comissão Arquidiocesana de Bens Culturais da Igreja. 

A Igreja e Cemitério de Nossa Senhora do Pilar, no Comércio, luta por restauro desde 2012. Uma obra parcial foi feita em 2021 pelo Iphan e Ipac, mas ainda falta a parte do telhado. “A gente pediu uma análise do projeto do Ipac e Iphan para saber exatamente o que falta. Com a chegada do Padre Renato Minho, a irmandade está sendo reestruturada e o padre conseguiu parceria, ajuda da comunidade, e renovou a igreja por dentro, trouxe quadros, peças. Com a Conder, fez limpeza da fachada e pintura. Agora tem o projeto de levantamento do telhado, que uma empresa está fazendo orçamento para a finalização do projeto para que ele possa ir para aprovação e captação de recursos”, diz o Irmão Jorge. 

A Igreja do Passo, no Santo Antônio Além do Carmo, já passou pelo restauro, que custou cerca de R$ 11 milhões, mas levou 20 anos à espera das obras e, enquanto isso, ficou de portas fechadas, interditada, porque o telhado ameaçava desabar. O templo foi entregue em 5 de fevereiro de 2018 e foi a obra mais completa em uma igreja tombada na Bahia. Por falta de recursos, somente após a interdição é que o projeto foi feito, já bem mais complexo.

“A Arquidiocese tinha uma parceria com o banco Itaú, mas o valor não ia conseguir arcar com toda a obra. Aí nós solicitamos ao Governo do Estado uma intervenção e saiu o PAC das Cidades Históricas, que incluiu a igreja do Passo neste programa federal e foi então possível realizar as obras”, explica o Irmão Márcio Prado, secretário da Comissão de Bens Culturais da Igreja.

Obstáculos para as obras “Salvador já nasceu com a égide católica, a cidade do Salvador já é um nome religioso. Nos séculos XVI a XVIII, tudo girava em torno da igreja católica. A igreja era um símbolo urbano, o referencial da cidade. Em volta das igrejas e dos conventos é que surgiram os bairros. Toda essa história arquitetônica do Brasil pode ser vista nas igrejas e é por isso que é tão importante a gente preservar esses locais, elas nos ajudam a contar a história do país, da sociedade. A igreja é o microcosmo da sociedade colonial no Brasil”, afirma o historiador Rafael Dantas, especialista em patrimônio histórico e iconografia.  Painel de azulejos portugueses da Igreja sede da Ordem Terceira de São Francisco, no Pelourinho, corre risco (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)  Justamente por essa importância, os projetos de manutenção, reforma e restauro não podem ser feitos de qualquer jeito, por qualquer empresa ou às pressas. É preciso passar por etapas como elaboração de um projeto, aprovação, captação de recursos e, finalmente, a obra. O problema principal está no financiamento. Para obter capital, as igrejas dependem de órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da iniciativa privada ou de arrecadação de dinheiro dos próprios fiéis.

“Você tem que contratar ao menos um engenheiro, um arquiteto, um restaurador e um historiador. Isso demanda tempo e também recursos, porque pode ser bancado pelo Iphan ou não. Aí depois o projeto vai ser protocolado no Iphan. Um técnico de lá recebe o projeto, analisa e aprova. Essa análise leva, no mínimo, quatro a cinco meses, dependendo da complexidade do projeto. Aí precisa de recursos para iniciar a obra. Se em um ano você não conseguir captar recursos, o projeto precisa ser atualizado, o valor vai ser revisto”, explica o Irmão Márcio Prado, secretário da Comissão de Bens Culturais da Igreja.

Sobre a captação de recursos públicos, o Irmão Jorge Mendes, vice-coordenador da Comissão Arquidiocesana de Bens Culturais da Igreja, ressalta os limites orçamentários. “A gente sempre procura andar junto com o Iphan. A gente sempre ouvia de algumas irmandades que o Iphan cria problema, que tomba e deixa cair. Mas a gente foi procurar compreender as questões e ter o Iphan como facilitador e não como complicador. A gente sabe e vê as dificuldades com relação a verba, hoje temos cortes do Governo Federal e por isso a nossa preocupação com a cultura de manutenção. Queremos o restauro e não deixar que os problemas voltem”. 

Com relação ao patrocínio da iniciativa privada, as coisas também não são simples. “Antigamente, tínhamos muito mais interesse das empresas. Depois, isso foi caindo, principalmente com a pandemia. E olha que há benefícios para elas, tem a dedução do imposto de renda, além da visibilidade da empresa”, diz o Irmão Jorge. O Padre Edílson, coordenador da Comissão de Bens Culturais da Igreja, traz uma das explicações. “Um patrimônio tombado tem muitas exigências para a obra. As empresas têm receio de assumir esses restauros e o orçamento acabar ultrapassando o valor inicial”, pontua.  Por falta de manutenção, plantas tomam conta de parte da fachada de igreja em Ilha de Maré (Foto: Sora Maia/Arquivo CORREIO) Falta de profissionais O professor e restaurador José Dirson Argolo fala sobre as especificidades de uma obra em um patrimônio como as igrejas antigas de Salvador. “É uma questão delicada. Tem que estudar o patrimônio, o contexto da época de construção, analisar as transformações pelas quais ele passou. E não pode ser qualquer um a fazer isso”.

Segundo Argolo, para lidar com restauro é preciso ter formação específica nessa área. “Tem que ser um arquiteto ou engenheiro com formação em restauro, tem que ser um restaurador”, diz. O especialista ainda coloca que a Bahia não tem curso de restauro e, por isso, quem quer seguir este caminho acaba buscando outros países. “O grande problema que a gente vislumbra no Brasil e, mais ainda, na Bahia, é a falta de profissionais competentes e que tenham formação específica para essas áreas. Na maioria dos casos, são as empresas construtoras envolvidas na área de restauro e isso não é o ideal”, acrescenta. 

Argolo também comenta sobre a falta de uma política voltada para a preservação e conservação dos patrimônios.“Preservar e conservar significa ter cuidados com o monumento para que ele não precise de restauro ou raramente precise. Isso tem a ver com os cuidados com os telhados, calhas entupidas, insetos xilófagos, incidência da luz natural e artificial, limpeza e manutenção. Se isso tudo fosse feito, a gente não ia precisar restaurar constantemente nossas igrejas. Mas como preservar e manter certamente não dá votos, os governantes deixam os monumentos chegarem a um estado quase de ruína para depois pensar na restauração, fazer uma grande obra que chame a atenção”, opina. Centro de Restauro Igreja e Convento Nossa Senhora da Lapa estão em fase de preparação de projeto de restauro, que começou no ano passado. O projeto abrange também a criação de um Centro de Restauro. O objetivo é que o lugar tenha salas de aula para a formação de mão de obra qualificada capaz de preservar os templos religiosos da cidade, e seja sede de cursos, seminários e simpósios, por exemplo.

“Hoje temos pouquíssimos restauradores. A ideia do centro de restauro é criar esse intercâmbio entre restauradores, historiadores, museólogos, engenheiros, arquitetos, etc, e formar a juventude para esse tipo de trabalho”, afirma o Irmão Jorge Mendes. “Estamos fechando a atualização de uma planilha de custo, já tem o intuito do Ministério do Turismo e do Ministério da Cidadania de intermediar. Está sendo protocolado um projeto no Iphan Bahia e uma arquiteta fez o levantamento do local, de tudo que precisa ser feito”, diz. Segundo o Irmão, o objetivo macro é evangelizar pela arte, fazendo proveito do bom estado das igrejas. “Queremos que as pessoas venham aqui conhecer a história da cidade, da igreja católica. Queremos que as igrejas sejam pontos de acolhimento, com trabalho social, que façam diferença para a comunidade ao redor. Temos muito a oferecer e queremos estabelecer uma cultura de educação patrimonial. Queremos a diaconia da beleza, ou seja, o serviço à beleza do Deus que se revela pela arte. Não é só restaurar, mas envolver o tripé: arte, fé e cultura”, finaliza. 

O Iphan foi procurado para comentar as questões abordadas na reportagem, mas não respondeu ao contato.