Justiça manda fábrica indenizar as vítimas do chumbo em Santo Amaro

Após 17 anos, TRF-1 determina que Plumbum use 10% do seu lucro anual para ressarcir população contaminada

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 22 de setembro de 2019 às 06:03

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Em janeiro deste ano, a espera por Justiça dos moradores de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, que já dura 17 anos, ficou mais próxima de ter um fim. A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu que a mineradora Plumbum, a União e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) são culpadas pelos danos ambientais e humanos decorrentes da contaminação por chumbo e cádmio no município. O CORREIO flagrou que uma obra da prefeitura da cidade desenterra resíduo tóxico de chumbo. 

Poucos meses antes da decisão do TRF1, em dezembro de 2018, a 11ª Vara Federal de Curitiba, no Paraná, condenou a mesma Plumbum ao pagamento de R$ 40 milhões em indenização por danos ambientais e à saúde dos moradores de Adrianópolis, município onde explorou o chumbo durante 57 anos. De acordo com o documento, a empresa encerrou as atividades em 1995, mas abandonou 177 mil toneladas de escória de chumbo na cidade, sem qualquer cuidado de contaminação. Além disso, segundo a sentença, a mineradora jogou resíduos tóxicos no Rio da Ribeira de Iguape.

Para Santo Amaro, em decisão expedida no dia 28 de janeiro, o juiz federal Roberto Carlos de Oliveira, ao reafirmar sentença de 2014, determinou que a União e a Funasa "foram omissas, cada uma em sua área de competência, em adotar as medidas para coibir e para reparar os danos ambiental e humano”. Ainda no mesmo documento, ficou decidido que a fábrica deverá indenizar a população santamarense com 10% do faturamento bruto anual da empresa, que continua operando em outros estados.

No entanto, mais uma vez, todas as três rés recorreram da sentença, interpondo embargos de declaração, o que suspende as obrigações até que eles sejam julgados. Quanto a isso, não há prazo na lei para que o TRF1 aprecie os recursos. Essa é a última etapa processual antes de as acusadas, principalmente, a Plumbum, iniciarem as reparações dos danos cometidos ao longo quase seis décadas de contaminação. Foto: Arisson Marinho/CORREIO A decisão acontece na ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal em 2002. Segundo acusação inicial, a empresa exerceu atividade no município baiano entre os anos 60 e 1993 e, ao fechar, deixou para trás cerca de 500 mil toneladas de escória de chumbo e outro metais pesados, além de ex-funcionários e moradores da região contaminados.

O MPF afirmou, também, que a fábrica se beneficiava da extração de minérios e produzia lingotes de chumbo (espécie de barra de metal fundido). Os resíduos da produção eram descartados de maneira inadequada, o que transformou Santo Amaro na cidade mais poluída por chumbo no mundo e com vários ecossistemas degradados, segundo constataram estudos desenvolvidos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e outras instituições nacionais e internacionais  a partir da década de 70.

A fábrica fechou em dezembro de 1993, mas o local onde funcionava não foi devidamente isolado, o que levou a Justiça, em 2014, a obrigar que fossem tomadas providências para cercar a área, colocar avisos para a população sobre o perigo de contaminação e elaborar plano de permanência e revezamento de vigilantes na entrada da antiga fábrica. A empresa também foi obrigada a tomar cuidado para a escória não se dissipar no solo, atingindo lençóis freáticos e o Rio Subaé. A equipe do CORREIO esteve no local entre os meses de maio e julho de 2019 e, mesmo após cinco anos da primeira decisão, ainda é possível observar que as sinalizações não são suficientes e o cercamento da área é precário.

A mineradora foi condenada, ainda, ao pagamento de indenização pelos danos ambientais sofridos, em valor correspondente a 10% do seu faturamento bruto, apurado mês a mês desde a data em que sucedeu a extinta Cobrac (em 1989) até quando encerrou suas atividades no local em 1993 (em montante devidamente atualizado). Segundo a decisão, que foi mantida em janeiro deste ano, o valor é para a recuperação do meio ambiente nas áreas atingidas por chumbo e cádmio.

No mesmo documento, ficou determinado que competiria à empresa promover o encapsulamento dos resíduos poluentes, guardando atenção às normas técnicas brasileiras e sob acompanhamento do Inema. Também foi determinada a proibição de retirada e alienação de quaisquer bens sob titularidade da empresa ré naquele município, para que sirvam de garantia para o cumprimento das obrigações previstas. Por fim, a Justiça condenou a União e a Funasa à criação, no prazo máximo de seis meses, de um centro de referência para tratamento de pacientes vítimas de contaminação por metais pesados, elaborando plano efetivo de atendimento. Um dos problemas mais graves está neste ponto, uma vez que, em razão da demora do Judiciário em apreciar os recursos, o projeto do centro continua apenas no papel.

De acordo com o procurador regional da República Francisco Marinho, responsável pelo caso no MPF, “quanto à responsabilidade da empresa pelos danos materializados assim como o risco à saúde da população de Santo Amaro, é importante ressaltar que a situação é crítica, necessitando até mesmo de um Centro de Tratamento Especializado para as pessoas contaminadas como medida imprescindível e emergencial, tendo em vista que os postos de saúde e hospitais relacionados ao SUS não se acham devidamente qualificados para oferecer o atendimento adequado às vítimas”.

Segundo o procurador, mesmo com a decisão, as três rés, ao se utilizarem dos embargos de declaração, pretendem adiar o desfecho final do processo, já que este recurso é permitido apenas quando há omissão, obscuridade e dúvida na sentença do tribunal, coisa que não houve no caso em questão. “É mais um instrumento de adiar o trânsito em julgado do processo e o início da execução”, garantiu ele, afirmando que, após o julgamento dos embargos, a Plumbum, União e Funasa já serão intimadas para fazer o que foi determinado pelo TRF1. Mesmo assim, explicou Francisco Marinho, as três acusadas ainda podem recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal, sem, no entanto, os recursos suspenderem a execução da sentença de primeiro grau. Foto: Yuri Rosat/CORREIO Diante da demora da Justiça e das manobras das acusadas para atrasar a sentença, a Defensoria Pública da Bahia, em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde de Santo Amaro, da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), membros do Ministério da Saúde e da sociedade civil, criou um Grupo de Trabalho para discutir as consequências da exposição e da contaminação da população por chumbo e outros metais pesados. Um dos defensores responsáveis pela ação, Rodolfo Barbieri, que atua no município do Recôncavo, afirmou que o propósito do grupo, que se reuniu pela última vez no último dia 3 de setembro de 2019, é discutir a melhor forma de auxiliar os moradores da região.

“A primeira reunião foi realizada em abril deste ano e a gente discutiu que caminhos vamos seguir. Desde a década de 70 já se discutem os problemas na cidade, que começou com a aterramento das ruas com material contaminado da empresa. Aos poucos foi-se descobrindo quais as consequências de todo o problema. No entanto, tudo está pulverizado, não há nada de concreto. É preciso unir tudo e tomar atitudes que, de fato, vão impactar na resolução da questão, declarou Rodolfo.

Uma das preocupações atuais da Defensoria, além de agilizar a construção do centro de tratamento das vítimas de exposição e contaminação por chumbo e outros metais, é quanto à falta de proteção dos operários que têm trabalhado na requalificação da cidade. “Essas obras são feitas sem nenhum cuidado. Os operários não usam equipamento e, os que utilizam, eu acredito que a luva não vai ser suficiente para barrar o contato deles com o chumbo, já que uma das formas de exposição é a via aérea. A empresa está isolada, mas o chumbo continua aqui, contaminando o solo, a água, criando problemas à saúde da população”, afirmou. Foto: Arisson Marinho/CORREIO Indenizações não passam de R$1,8 mil Enquanto a ação civil pública, aberta pelo MPF na Bahia em 2002, corria na Justiça Federal, a Associação das Vítimas por Contaminação por Chumbo, Mercúrio e Outros Elementos Químicos do Estado da Bahia (Avicca) ajuizou, em 2011, ação coletiva em nome dos ex-funcionários contra a mineradora Plumbum. Apesar de a primeira decisão ter sido em 2014, o documento também aparece como a última movimentação relevante do processo na Justiça. Ou seja: tudo está parado. Não há impetração de recursos nem novos despachos nem sequer houve encaminhamento ao tribunal.

Em 16 de junho de 2014, a juíza Ana Gabriela Duarte Trindade indeferiu o pedido da Avicca para que a mineradora custeasse as despesas médicas dos associados e ex-funcionários da fábrica, alegando que não há como adiantar o valor sem que haja prova da real necessidade de tratamento dos autores. Para a magistrada, o pedido não pode ser reconhecido, porque é necessário comprovar que, de fato, os danos à saúde existem. Após isso, segundo movimentação processual, a Avicca não recorreu da decisão, que foi favorável para a Plumbum.

Foi com esse misto de tristeza e esperança que a equipe do CORREIO encontrou alguns dos ex-funcionários da mineradora, além de filhos e viúvas daqueles que já morreram. Eles lutam com toda as forças para que o tratamento seja garantido, independentemente de qual das ações judiciais reconhecer primeiro este direito. Presidente da Avicca, Adailson Pereira, conhecido em Santo Amaro como Pelé, que trabalhou na empresa por apenas seis meses, contou que sofre com múltiplos problemas de saúde e que não vai descansar enquanto a justiça não for feita. “Eu tinha que trabalhar nessa fábrica para hoje estar representando os trabalhadores", disse Pelé.

A Plumbum fechou as portas em 1993, deixando para trás cerca de 1,2 mil funcionários que tinham como o único sustento o trabalho com os metais. E pior, além de não ter mais emprego, a maioria deles sequer recebeu qualquer tipo de indenização no momento da demissão. Pelé contou que isso aconteceu por um motivo específico: os ex-funcionários, todos pobres, não conseguiram dinheiro para custear os exames junto ao Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (Cesat), em Salvador, ficando reféns do médico da mineradora, que, nos relatórios demissionais, não indicou nenhum tipo de problema de saúde nos empregados.

“Naquela época, a gente tinha um sindicato, que não fez nada pelos funcionários. Não foi feito nenhum exame demissional, levando em consideração apenas relatórios médicos emitidos pelo doutor Ademário Spínola, do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba, que era o médico contratado pela empresa. Era esse médico quem fazia todos os estudos com o trabalhador, inclusive, se alguém adoecia, ele dava injeção na barriga para baixar o nível de chumbo no sangue, e nada saía de lá, ficava tudo em segredo”, disse o presidente da Avicca. O CORREIO tentou contato por e-mail e telefone com o Dr. Ademário, mas, até o fechamento da matéria, não houve retorno.

Ex-funcionário da casa de forno durante 1 ano e 3 meses, Moacyr Boa Morte Martins, 60 anos, acusou a juíza que homologou as demissões de coagir os empregados da mineradora. “Recebi R$ 1,8 mil de indenização e a juíza coagiu a gente antes de entrar na sala - ‘se não aceitar esse dinheiro, vai ter de fazer exame do próprio bolso’. Não me restou alternativa. A fábrica sabia que ninguém tinha como custear os exames. Nunca mais chegou nada pra gente”, contou. Foto: Arisson Marinho/CORREIO Um dos poucos que receberam valor diferente foi José Carlos Gomes Ribeiro, o Seu Zeca, 77 anos, que foi mecânico industrial da Plumbum durante 15 anos. “A gente não teve direito a nada, nem a plano de saúde. Na época do fechamento, a gente recebeu um cala a boca no lugar das indenizações. Depois, eu recebi 100 mil reais, porque fiz os exames com dinheiro de meu bolso. Minha esposa, que já morreu, também trabalhava  e me ajudou a pagar. Mas, isso foi há apenas 3 anos, demorou muito de sair o dinheiro”, declarou.

“A maioria recebeu R$ 1,8 mil na época que a fábrica fechou, em 1993. Me ofereceram também, mas eu não aceitei. Eu disse que preferiria ficar sem nada, porque não dava nem pra fazer mercado. Até me ameaçaram. Depois me chamaram pra me oferecer 20 mil, depois 50 mil e, por último, os 100 mil que eu aceitei há três anos. Nesse dia tinham 8 pessoas lá pra fechar o acordo. Foi o dinheiro bruto, sem honorário”, garantiu Seu Zeca.

A equipe do CORREIO procurou a Plumbum, mas não obteve retorno até o momento do fechamento das reportagens. Os advogados da empresa que constam no processo, Gilberto Neto e Joaquim Jair Aguiar Júnior também foram procurados, mas não responderam aos contatos Nem a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) nem o médico e professor da UFBA, Ademário Galvão Spínola respondeu aos e-mails e telefonemas feitos pelo CORREIO.

Com o processo na Justiça Federal travado e com a ação coletiva sem movimentação, a situação das vítimas é cada vez mais difícil e até desesperadora, já que muitos não conseguiram se aposentar, em razão da documentação recebida no momento da demissão, outros aceitaram indenizações de baixíssimo valor e todos têm em comum os problemas de saúde e a falta de dinheiro para custear os tratamentos. Desta forma, só restam às vítimas esperar.

O que dizem os órgãos oficiais Em resposta à equipe do CORREIO, por meio de nota, o Ministério da Saúde afirma que realizou estudo de avaliação de risco à saúde da população de Santo Amaro e, "em parceria com as Secretarias de Saúde Municipal de Saúde de Santo Amaro e Estadual da Bahia, em 2010, publicou o Protocolo de Vigilância e Atenção à Saúde da População Exposta a Chumbo, Cádmio, Cobre e Zinco em Santo Amaro (BA)".

Já a Advocacia Geral da União (AGU), que defende a União na ação movida pelo Ministério Público Federal, disse que "a sentença ainda não transitou em julgado, de modo que, no momento, não se pode falar em descumprimento de ordem judicial". Além disso, a AGU declarou que, após se esgootarem os recursos cabíveis, "a União poderá adotar as medidas necessárias ao seu cumprimento, no que lhe couber".

Veja a linha do tempo da história do chumbo em Santo Amaro:1960: Cobrac é instalada em Santo Amaro - tentativa de industrializar a região. Subsidiária da empresa francesa Penarroya Oxide S.A produz lingotes de chumbo - que era extraído em mina na cidade de Boquira na Chapada Diamantina; 1970: Início de estudos sobre a suspeita de contaminação de moradores. Cobrac pede aumento de produção em 15 mil toneladas - governo do estado nega e sugere a transferência da empresa para o Centro Industrial de Aratu (CIA), o que não aconteceu; 1975: Os estudos detectaram que havia contaminação de crianças que moravam próximas ao Rio Subaé. Desde o início, a população santamarense reclamava de mal estar relacionado à fumaça; 1980: Construção de chaminé (mas filtro é instalado só em 1989). Estudo da Ufba constata: 96% das crianças que moravam em raio de 900 m da fábrica estavam contaminadas por chumbo.  Escória é fornecida para a prefeitura pavimentar cidade. Em 1989, empresa vendida ao Grupo Trevo e passa a se chamar Plumbum - com 100% de capital nacional; 1989: A Cobrac é vendida para o Grupo Trevo e passou a se chamar Plumbum, tendo 100% de capital nacional; 1990: Fechamento da fábrica, em 93, deixa desempregadas 1,2 mil pessoas. Novo estudo, em 98, atesta que, mesmo depois do fechamento, local onde ficava metalurgia e cidade continuavam fonte de exposição a chumbo; 2000: Zona urbana de Santo Amaro classificada como altamente contaminada por chumbo e outros metais. Ministério Público Federal ajuíza, em 2002,  ação civil pública pedindo que empresa,  União e Funasa respondam pelos danos; 2014: Primeira decisão da Justiça Federal condena a mineradora ao pagamento de indenização de 10% do faturamento bruto da empresa, que seria utilizado para custear a construção do centro de saúde destinado às vítimas de chumbo na cidade. A antiga Cobrac foi condenada ainda a realizar o cercamento da área da fábrica e instalar placas de sinalização, alertamento sobre os perigos da área. Também foram condenadas a União e a Funasa à construção do centro de saúde e realização de estudos para tratamento da população; 2019: Após recursos, nova decisão manteve a condenação anterior, mas embargos de declaração interpostos pelas três acusadas impedem que a sentença seja proferida. Neste momento, o processo aguarda o julgamento dos recursos. O CORREIO publica a partir de hoje um especial sobre o chumbo de Santo Amaro, um problema que há décadas atinge a cidade do Recôncavo. Neste e nos dois próximos domingos (29 de setembro e 6 de outubro), vamos denunciar a mais recente exposição ao metal pesado sofrida pela população e mostraremos como viveram e morreram os mais de 3 mil santamarensens com sequelas causadas por chumbo, cádmio e outros metais pesados.