Lei Áurea faz 130 anos, mas as marcas da escravatura ainda doem

Livro com 50 ensaios escritos por grandes estudiosos mostra como a escravidão criou raízes no cotidiano do Brasil

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  • Hagamenon Brito

Publicado em 12 de maio de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Os patrões brancos e seus escravos num jantar brasileiro, em 1827. Obra do pintor francês Jean-Baptiste Debret (Biblioteca Pública de Nova York)

Assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea extinguiu a escravatura no Brasil depois de mais de três séculos da cruel e desumana prática mercantilista e social. Dama em liteira, carregada por escravos, e suas acompanhantes. Aquarela de Carlos Julião, no século XVIII (Fundação Biblioteca Nacional/Divulgação) Entre 1550 e a década de 1860, quando aqui chegaram as últimas levas de africanos, a então maior colônia de Portugal recebeu um total estimado de 4,8 milhões de escravos negros (de 38% a 43% dos africanos que saíram forçadamente do seu continente).

Último país das Américas e do Ocidente a libertar os africanos e seus descendentes, o Brasil tem motivos para celebrar os 130 anos da Abolição? Certamente que não, mas é uma data importante para nos fazer pensar e não esquecer o que aconteceu - e como isso ainda influencia socialmente o país.

Organizado pelos historiadores Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, o livro Dicionário da Escravidão e Liberdade: 50 Textos Críticos (Companhia das Letras | R$ 74,90/impresso | R$ 39,90/e-book | 496 págs.) é um dos trabalhos mais ambiciosos e completos da atualidade sobre a escravidão no Brasil.  

Os 50 ensaios abrangem temas que vão desde as charqueadas no Rio Grande do Sul até os Quilombos na Amazônia, passando pelas regiões da África de onde partiram os escravizados para o Brasil. Assuntos como casamento entre escravizados, leis, castigos, mulheres e crianças, amas de leite, tráfico, canções, economia, emancipações, escravidão indígena, imprensa negra, irmandades, educação, morte e ritos fúnebres, rebeliões, quilombos e revoltas transformam o dicionário numa obra valiosa sobre o sistema responsável pela desigualdade social ainda existente no país.  Missa campal celebrada em ação de graças pela Abolição da Escravatura no Brasil, no Rio, em 17 de maio de 1888 (Divulgação) No prefácio, Alberto Costa e Silva afirma que o livro “mostra a grande quantidade de faces que compõem o que é um poliedro em movimento”. Com um rico e abrangente caderno de imagens, a obra reúne 50 verbetes escritos pelos principais especialistas do tem em atuação no país e no exterior, sempre de modo acessível ao grande público e sem notas de rodapé.

Entre os especialistas encontram-se os escritores e historiadores baianos Isabel Cristina Ferreira dos Reis, João José Reis, Luciana Brito, Luis Nicolau Parés e Walter Fraga. A seguir, leia entrevistas com os organizadores do livro.

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ENTREVISTA/LILIA SCHWARCZ: "Negros têm menos oportunidades neste país" Professora titular de Antropologia da USP e Global Scholar na Universidade de Princeton, nos EUA, Lilia Schwarcz é autora, entre outros, de O Espetáculo das Raças, Brasil: Uma Biografia e Lima Barreto: Triste Visionário.

Joaquim Nabuco disse no final do século XIX que a escravidão permaneceria por muito tempo como a característica nacional do Brasil. A afirmação permanece atual? Sem romantizar a declaração do Joaquim Nabuco, pois ela saiu num texto muito polêmico e que tem momentos muito diversos, eu diria que a escravidão permaneceu como a característica do Brasil, sim. Ainda vivemos muito das consequências e repercussões do sistema escravocrata, que acabou apenas há 130 anos. Mas temos feito mais na minha opinião: temos reinventado novas formas de racismo, formas diferentes desse racismo que hoje chamamos de estrutural.

Por que nesse tema, como também em outros, o Brasil tem tanta dificuldade em enfrentar os seus problemas de frente? Até pouco tempo ainda dizíamos que o Brasil era uma democracia racial. A gente pode jogar para o passado para pensar nos aspectos mais recentes. Fomos o último país do Ocidente a abolir a escravidão mercantil, mas também a Lei Áurea foi uma lei muito conservadora, muita curtinha. Na época, existiam outras leis em debate, mas passou a mais conservadora. Os negros nunca deixaram de lutar, mas a partir dos anos 1930 cresceu essa ideia de democracia racial e virou um mito. Esse mito acabou definindo a nossa sociedade e não foi algo apenas de Gilberto Freyre, foi algo que nos definiu também no exterior. Florestan Fernandes disse que essa ideologia de democracia racional fez com o que brasileiro também, entre outros motivos, demorasse muito a refletir sobre o nosso racismo. Contemporaneamente, temos não poucos que chamam esse aspecto como a ideologia do mimimi. É impressionante, porque isso é uma das fases da recessão da democracia que vivemos atualmente, da impossibilidade de reconhecer o quão nosso presente está cheio do passado, embora a gente não deva nunca só culpar o passado. A luta pelos direitos civis no Brasil começou tarde, no final da década de 1970. Pensando como historiadora, foi só recentemente que a lógica das cotas e das ações afirmativas entraram em pauta para ficar, espero.

Sabemos que cada país tem sua própria história, mas nos EUA, onde também houve escravidão, até o começo dos anos 60 ocorreram casos de negros enforcados e, em 2009, Barack Obama chegou à Casa Branca.  Você já consegue imaginar um negro na Presidência do Brasil? Tínhamos aí a possibilidade da candidatura do Joaquim Barbosa, mas ele desistiu. Acho que  o problema não é nem esse, mas de saber que a raça no Brasil é um plus. Nossos dados mostram como o Brasil é profundamente desigual. Basta compararmos marcadores sociais da diferença, como classe e raça, para ver que raça é sempre uma questão agravante. Negros têm menos oportunidades neste país. Morrem antes, têm menos acessos a transporte, a saúde, educação. Estamos recriando novas formas de racismo, aumentando o racismo estrutural.

De forma geral, a nossa democracia não conseguiu criar bem-estar social ainda, o que é cruel e mostra o tamanho das desigualdades sociais do país... Sim, e havíamos conquistado algumas coisas importantes e que pareciam estar consolidadas, mas a nossa crise atual mostrou que não. Nós acreditávamos que as conquistas democráticas estavam asseguradas.

Debater em momentos históricos assim é mais estimulante para os historiadores, mesmo que muitos digam que é mimimi? Sim, nunca podemos ter medo do debate. Conviver com a diferença de pensamento é fundamental e faz parte do jogo. ENTREVISTA/ FLÁVIO GOMES: "Rui Barbosa não queimou documentos importantes da escravidão" Professor da UFRJ e autor, entre outros, dos livros Mocambos e Quilombos, De Olho em Zumbi dos Palmares e O Alufá Rufino, Flávio Gomes é atualmente pesquisador do CNPq, desenvolvendo pesquisas em história comparada, cultura material, escravidão e pós-emancipação no Brasil, América Latina e Caribe.

Cento e trinta anos depois da Abolição, as marcas e consequências da escravidão ainda continuam fortes na sociedade brasileira? Essas marcas ainda são muito fortes, sim. As desigualdades raciais e sociais continuam grandes, seja em termos institucionais, seja em termos pessoais, o que vale para os cidadãos brasileiros e, especialmente, a população negra.

Você acha que as datas de 13 de maio, dia da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, e o 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi, são completamentares em importância ou a data de Zumbi é mais significativa? Se complementam. A data de 13 de maio já foi feriado nacional e, com o tempo, o movimento negro passou a contestar e ela deixou de ser um evento cívico. Mas, do ponto visto histórico, ela teve importância, enquanto o 20 de novembro tem mais a ver com a resistência negra. Ambas as datas servem para momentos de reflexão sobre a questão do negro no Brasil.

Se pensarmos em termos geracionais, a abolição ocorreu há pouco tempo, não é mesmo?  Certamente, e os atuais índices de desigualdade, discriminação e exclusão tornam nítida a permanente e teimosa invisibilidade dessas gerações de afrodescendentes.

É mesmo verdade que o então ministro Rui Barbosa mandou queimar, em 1890, registros da escravidão para evitar que os antigos donos pedissem indenização ao governo pela perda dos escravos, num desserviço à história? Isso foi propagado ao longo das décadas de forma errada. Foi uma desculpa da historiografia oficial, que não se interessava em estudar o assunto. O que ele fez foi queimar documentos fazendários, relativos a impostos.  Era uma resposta aos fazendeiros que esperavam ser indenizados pela libertação dos escravos, sim, mas não eram documentos importantes sobre os escravos.