Leitura para brancos que fogem do espelho

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  • Da Redação

Publicado em 31 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Só consigo começar esse texto assumindo, com vergonha, que só aos 40 anos de idade eu finalmente me dei conta da minha Branquitude. E ainda estou me dando conta. A cada dia... Estou me dando conta dos meus privilégios brancos. Da minha história. Da minha herança. 

Sou cria do Projeto Nacional de Embranquecimento da nossa população brasileira. Com a chegada dos imigrantes, no final do século XIX, começo do século XX, pouco sobrou para contar, apesar de saber, pelos traços e cabelos que, sim, em minha família existe também sangue vindo da África. De lá usurpado. Minha avó paterna com cara de cabocla... Parda... Com seus traços misturados a traços indígenas. Tão brasileira! Mas isso, infelizmente, parece que não interessava contar... Em casa só me contaram do sangue italiano, austríaco e português por parte de pai... E do outro lado, do sangue português e italiano que se misturou ao sangue japonês. E assim, automaticamente, o programa escuso de embranquecimento da nossa população seguiu seu curso dentro de cada lar... Apagando da nossa história a verdadeira ancestralidade brasileira. E em navios bem diferentes dos navios negreiros, essa parte "oficial" dos meus familiares chegaram ao Brasil. E a minha história foi se diluindo. 

Vivi cegamente com meus privilégios. Nascida em São Paulo. Criada na Vila Olímpia. Meus pais conseguiram pagar pra mim, filha única, estudos no Colégio Bandeirantes. Cadê o mérito? Passei por UNESP, USP... E ainda levei 40 anos para me dar conta disso! Mérito? Não há. Vergonha histórica, sim.

Paralelamente, desde pequena, eu já recusava os padrões machistas. Queria brincar com bola, carrinho, revólver. Não aceitava a conversa de que as meninas eram mais fracas. Sem saber, acho que eu já era feminista. Pois é... Mas, feminismo elitista? Esse é para poucas. Levei 40 anos até parar pra pensar em como eu mesma, mulher branca, oprimia o meu próprio gênero feminino. E assim o tenho feito a cada dia em que eu não me dou conta da opressão interseccional de raça e de classe social. Não é só uma questão de gênero. Mulher branca que não entende o seu papel de agente opressora sobre as mulheres negras e pobres tem que cair do salto! Caí e tive que aceitar: estou sendo racista. Mas eu jurava que não. Talvez como você, pessoa branca, que lê esse texto agora... Eu, racista?! É claro que não! Sinto em te informar que se você ainda não parou para pensar que a sua cor é branca, não pensou que você não tem o direito de se ver como o protótipo do ser humano "universal", "neutro" e que também você deve se colocar sob o rótulo de uma "raça"... É... Você tem mais racismo aí dentro do que pode imaginar! 

Com uns 13 anos, me lembro, saí na briga com um moleque da escola. Branco, é lógico. Ele fez uma piada racista. Eu não aceitei. Era óbvio que SÓ ELE era racista. Mas eu, não! Hoje me pergunto: como consegui demorar tanto? Por que só agora? Levei 40 anos pra conseguir perceber que o racismo estrutural está dentro de mim, fora de mim. Ele está em todos os lugares!

Se você não percebeu ainda que, por exemplo, ao tomar o metrô no feriado pra encontrar sua galera branca em Pinheiros ou na Paulista, a imensa maioria das pessoas que estão uniformizadas, trabalhando, limpando o chão que VOCÊ suja são... pretas... Me desculpe, mas você é racista. E se você enxergou, mas isso não te incomodou... Me desculpe, mas você é mesmo racista.

Se em seu ambiente de trabalho, de estudo, de diversão você segue tranquilamente se dizendo "color blind"... Se em nenhum momento você questionou o porquê da quase total inexistência de pessoas pretas dando aula em universidades ou dando coordenadas de trabalho nos mais altos postos de comando... Então, me desculpe, mas você é racista....

Se você, com sua cor branca, passa por uma blitz policial e quase nunca é parado. E se continua achando que isso ocorre assim, desse jeito, só porque você "deu sorte" ou nunca fez nada de errado... Minha amiga, meu amigo... Você é racista. Pois não entendeu o nosso privilégio branco: o pressuposto da "alva" inocência... Porque pelo o que eu sei, nossos irmãos não-brancos definitivamente não estão sentados à mesma mesa desse nosso banquete de direitos. A polícia vai parar cada um deles. Sempre. E arrisco dizer que, nesse caso, o anti-privilégio negro é o pressuposto da culpa estampada na cor da pele. Pois é... Se você nem percebe como é bem tratado cotidianamente por conta de sua cor branca... Bom, eu já nem me desculpo mais e só te aviso: você é racista!

E eu... Mestrado em Psicologia Social na USP... E passei por todo esse processo somente reproduzindo, desde a graduação, a ladainha marxista de classe... Só de classe social! Em que mundo eu vivia? Dívidas históricas em haver...

Se você, homem branco, nunca se questionou do porquê de tantos nomes de homens brancos na sua aula de História: nomes de presidentes (homens brancos), nomes de revolucionários (homens brancos)... e se você nem notou que o mesmo acontecia na sua aula de Física, Literatura, Geografia, qualquer coisa! Sinto informar: você é machista e racista! E se você, mulher branca, se incomodou com essa preponderância masculina gritante, mas nunca se questionou o porquê da ausência de autoras negras em nossa produção acadêmica... Amiga... você é racista! 

E se você pensa que a beleza mais parecida com a sua tem sido tomada como "padrão" por talvez ser realmente a beleza "mais bonita". Ai-meu-deus, é hoje que você vai ter que enxergar: você é racista! 

Se com a emergência da Classe C, você, branquinho, leite, "cracker"... reclamou que agora o aeroporto andava lotado com gente "diferente", "esquisita"... Cara... Tá difícil pegar leve com você... Vê se acorda! Você é sim racista! 

Então acorda! Mas acorda logo! Não leva tanto tempo quanto eu levei para dar só o primeiro passo... Porque o tempo que a gente leva pra se dar conta da nossa Branquitude... enquanto a gente degusta esse "benefício" do direito à demora em se olhar no espelho e enxergar a realidade... enquanto isso, muita coisa errada continua acontecendo... E essa merda toda se traduz em horas e dias e anos e décadas e séculos em que toda a iniquidade continuará imperando. 

Então, segura essa na SUA conta, na MINHA conta! Na conta da porra do NOSSO privilégio branco! Pra gente, fica só a responsabilidade e a culpa. Tá barato! Pra eles, nossos irmãos negros, a conta é bem mais cara. Eles pagam com a vida. Com o corpo. Com o silêncio perpetuado e imposto por nós, brancos... Pra gente existir assim, larga e confortavelmente no mundo, eles continuam a pagar a conta com a invisibilidade e com a inexistência humana. Acorda! Mas vê se acorda logo!

Enquanto isso... dorme com essa conta que nunca fecha:

- 75,5% das pessoas assassinadas em nosso país, de acordo com o IPEA (2018), são pessoas negras... e essa taxa só tem aumentado nos últimos anos; - De acordo com o Atlas da Violência (2018), é como se "negros e não negros vivessem em países completamente distintos"; - O feminicídio tem crescido entre mulheres negras e indígenas e diminuído entre brancas (Pesquisadora: Jackeline Aparecida Romio. 2018);  - A taxa de analfabetismo para negros é mais que o dobro em comparação a taxa de analfabetismo para brancos: 9,9% contra 4,2% (PNAD 2016) - E a maioria da população encarcerada? E a maioria das pessoas desempregadas?... Eu preciso mesmo falar? 

Só peço que vá ler. Vá se informar! Esse é só o primeiro passo. Leia o que a mulherada preta - Salve! - tem a ensinar: Grada Kilomba, Patricia Hill Collins, Conceição Evaristo, Angela Davis, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, bell hooks, Djamila Ribeiro, Audre Lorde, Soujourner Truth... Isso, só pra começar... Escute a música de Bia Ferreira... Absorva o que ela tem a ensinar. Eduque-se! Receba de peito aberto e ouvidos atentos sua voz poderosa enquanto ela canta: "Experimenta... nascer preto, pobre na comunidade... Você vai ver como são diferentes as oportunidades... E nem venha me dizer que isso é vitimismo. Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo".

Vamos, acorda! E se olhe no espelho. Vai! Acorda agora! Acorda logo! Acorda comigo!

Ingrid Campregher é Psicóloga Clínica e Mestre em Psicologia Social - CRP 06/70991

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