Lenha para esquentar água, vela e roupa sem passar: como foi o apagão de 2001?

Conheça os relatos de pessoas sobre o período de racionamento que durou nove meses

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  • Thais Borges

Publicado em 2 de outubro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Sora Maia/CORREIO

Durante algumas horas do dia, tudo era desligado. Aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos não ficavam nem mesmo na tomada. Banhos tinham que ser rápidos ou o chuveiro elétrico desligado permanentemente. À noite, famílias viviam à base de vela. Era a regra em todo o país: ou reduzia-se o consumo da casa em pelo menos 20% ou a energia seria cortada por três dias.

Agora, as memórias do racionamento de energia em 2001 se juntam a um período que está sendo apontado como a pior crise hídrica dos últimos 91 anos. 

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Leia algumas histórias de pessoas que viveram o apagão em 2001 e como elas estão hoje 

‘Dependo da energia e da internet para me sustentar’

“Em 2001, fiquei muito condicionada a não gastar energia. Virou uma obsessão que acabei trazendo comigo para a vida. Nunca imaginei que viveria algo parecido ou pior. É como se fosse uma sensação de apocalipse. Só senti algo parecido nas greves da polícia e dos caminhoneiros. Não acendia a luz ou apagava sempre que saía de um ambiente, não tomava banho quente, não deixava a torneira aberta quando escovava os dentes e sofria toda vez que via alguém desperdiçando água. Tivemos um problema que a TV e a geladeira queimaram e foi um prejuízo que levou tempo para repor. Não entendíamos muito dos nossos direitos. Hoje, eu preciso de energia elétrica para me sustentar. Trabalho com computador, tablet e smartphone porque a maioria dos meus desenhos é feita digitalmente. Como é home office, dependo da energia e da internet o tempo todo. Na pandemia, inclusive, o consumo de energia aumentou cerca de 40%. 

Se tivesse que reduzir drasticamente o consumo, perderia dinheiro e isso afetaria o sustento de minha casa”. 

Marília Vieira, ilustradora, 46 anos 

‘Pensamos como diminuir mais o consumo de energia se tiver racionamento e não chegamos a um entendimento’

“Uma das memórias mais fortes que tenho de 2001 é do meu pai controlando o consumo de energia em casa. Como minha casa era pequena, a gente não tinha muito de onde tirar. Mudamos todas as lâmpadas de incandescentes por fluorescentes, meu pai desligava todos os aparelhos da tomada e ele era super rígido com o tempo de banho. Por um tempo, ele até desligou o chuveiro elétrico e a gente só tomava banho frio. Mas esquecer a lâmpada acesa era um absurdo em casa. Agora, minha vida com relação à dependência de energia é enorme. Nesse momento mesmo, estou com o celular na tomada falando com você. Carrego ele duas, três vezes por dia e nunca deixo desligado para fazer coisas da vida. Uso muito redes sociais pelo celular, então a dependência é da bateria. Como estou trabalhando home office, são oito horas de trabalho, o que significa que são oito horas com o computador ligado, com o celular carregando ou carregado porque é meu trabalho. Estou, no mínimo, oito horas por dia conectado. Eu também faço um curso e tenho três horas de aula por semana, então tenho que estar com a internet ligada o tempo inteiro. Moro com três pessoas que também trabalham de casa e todo mundo está de 9h da manhã às 9h da noite ligado na internet trabalhando. Precisamos de internet, precisamos de quatro computadores ligados e precisamos de quatro celulares carregando o tempo inteiro. Para além disso, quando saio do trabalho, sempre acabo assistindo alguma coisa na TV como Netflix, um filme e tal. Sempre na internet. Meu celular não tem sinal em alguns lugares da casa, então uso wifi. Nosso consumo aumentou na pandemia e também no inverno a gente usa chuveiro elétrico o tempo inteiro. Agora que está esquentando, usamos ventilador e vaporizador.

Ficar em casa aumentou o consumo consideravelmente. Esse ano eu mudei de casa e, com a mudança de casa, mudou também o consumo de energia. Como a gente pagou o dobro do consumo no mês, mexemos em algumas coisas, já controlamos os horários de banhos. Por isso, a gente estava pensando justamente de onde iria diminuir o consumo de energia se tiver racionamento e não chegamos a um entendimento. É tomar menos um banho por dia? Durante o dia, não preciso tomar banho quente, mas o ideal  é diminuir banhos, diminuir a quantidade de roupa que lava na máquina por semana? Desligar os aparelhos da tomada? Trocar lâmpada a gente já trocou, então não sei mesmo o que fazer. Tenho que carregar menos o celular? É difícil pensar, trabalhando em casa”. 

Daniel Cruz, 34 anos, comunicólogo

‘Não sei mais onde economizar’

“Eu tinha apenas nove anos em 2001. Não tinha plena consciência do que estava acontecendo, mas lembro de um temor generalizado de ficar no escuro. Os jornais noticiavam isso o tempo todo. Lembro principalmente da capa de uma revista com a frase ‘Vai Apagar’. O temor era ainda maior porque naquele mesmo ano houve um blecaute que atingiu diversos estados. Só se falava nisso. 

Meus pais nunca foram as pessoas mais preocupadas com economia de energia, mas, na época, trocaram todas as lâmpadas por fluorescentes, que eram muito caras, porém mais econômicas. Sempre mandavam apagar as luzes e os banhos eram mais rápidos. Lembro  de um vizinho que teve que se mudar com toda a família para a casa da mãe porque teve a energia cortada. Outro, em contrapartida, conseguiu quase zerar a conta graças ao bônus que era dado para quem cumprisse a meta. Ele ficava mais na casa dos parentes do que na própria casa. Atualmente, fico muito pouco tempo em casa durante o dia. Trabalho na rua, então passo o dia inteiro usando apenas o celular. À noite, uso o notebook para estudar. Faço faculdade à distância, então energia é fundamental. Fora que o chuveiro é elétrico. Comida é esquentada no micro-ondas. O celular precisa ser recarregado em alguma hora. Por conta do calor e dos insetos, dormir sem ventilador é quase impossível. Então eu diria que sou bastante dependente da eletricidade. 

Se o racionamento for confirmado, vai ser bem complicado. Mesmo sem ele, já estamos tentando diminuir o consumo de energia o máximo possível, até porque a conta de luz só aumenta. Esse mês, inclusive, foi a conta mais cara desde que me mudei. Eu realmente não sei onde mais economizar. Talvez tenha que deixar de usar o microondas ou tomar banho frio, vai ser o jeito. Porque todas as lâmpadas da casa já são de LED e ficam quase sempre apagadas. E não tem nenhum outro aparelho eletrônico que fique ligado constantemente além da geladeira, já que os computadores só são usados quando necessário”.

Lucas Navarro, 29 anos, autônomo

‘Meu tio pegava lenha para esquentar a água’

“No apagão de 2001, eu era muito novinha, tinha seis para sete anos. Lembro de algumas coisas, meus pais me contaram outras. A lembrança que eu tenho é que a gente precisava diminuir o consumo de energia, então a gente tomava banhos mais rápidos, evitava acender a luz, utilizar energia até porque a conta de luz também era mais cara, assim como está acontecendo agora.Lembro de a gente comprar muita vela, até porque nos momentos de apagão, que eram horas, eu tinha muito medo do escuro. Então a gente comprava muita vela para deixar aceso.Outra coisa que lembro é que no meu bairro, que é um bairro mais periférico de Juiz de Fora, tem alguns lugares com muita árvore. Lembro de pessoas buscando lenha. Um tio meu pegava lenha para poder esquentar água para os momentos que não tinha luz. 

A gente hoje em dia também tem feito uma economia de energia, vou tentando ligar a luz o mínimo possível. Quando chega a noite, a gente fica mais no escuro ou com uma luz só, tomando banhos mais rápidos. Eu me formei agora, mas estudava de casa e continuo estudando de casa. Então, se tiver um apagão como foi o de 2001 e 2002, isso vai impactar muito a minha vida estudantil e a profissional também, assim como vai impactar a vida de várias pessoas. A gente está vivendo uma pandemia em que quase tudo ficou digital, quase tudo virou home office, então vai impactar a vida de muita gente, além da questão da higienização. A gente não pode, na pandemia, deixar de tomar banho, lavar as mãos”. 

Marina Lopes, jornalista, 26 anos 

‘Era comum ver apenas uma vela tremulando nas casas’

“Eu tinha 8 anos de idade em 2001, mas estava sempre atenta ao que acontecia. Lembro do noticiário, mas principalmente dos adultos conversando sobre o racionamento de energia que vigorou naquele ano. Com certeza, o mais marcante foi ver casas às escuras durante a noite. Impossível não ter sido marcada pela escuridão que tomava as ruas devido ao desligamento de muitos postes de iluminação pública. Somando-se isso com a economia que as pessoas buscavam fazer em suas residências, era comum ver apenas uma vela tremulando dentro das casas, iluminando o cômodo em que os residentes estavam.Em casa havia a preocupação com o uso da televisão, da geladeira e das lâmpadas. Fomos ensinados a economizar. Se saía de um cômodo, tinha sempre que lembrar de apagar a luz. Nada de abrir a geladeira e ficar pensando na vida, o negócio era abrir, pegar o que precisava e fechar em seguida.Hoje em dia, não dá pra viver sem energia elétrica por muito tempo. Por diversão ou trabalho, a eletricidade é imprescindível. Uso a internet tanto para trabalhar quanto para estudar. Por mais que se busque um equilíbrio, estamos sempre conectados.

Meu marido trabalha fora, mas eu trabalho e estudo em casa. Sendo assim, foi impossível não haver um pequeno aumento no consumo de energia. Mesmo tentando economizar onde é possível, a conta de energia já ultrapassou a barreira dos R$ 250.

Caso venha a ocorrer um racionamento assim como em 2001, sinceramente, não sabemos como iremos fazer. Somos somente meu marido e eu em casa. O computador é usado para trabalho, não dá para desligar a geladeira. Climatizador e ventilador não dá para deixar de usar, afinal moramos em Fortaleza que é uma cidade extremamente quente. Não temos ar-condicionado ou chuveiro elétrico. Nossa TV quase nunca é ligada. É uma situação que nos preocupa muito, pois não temos mais no que economizar”.

Thais Gomes, 28 anos, freelancer

‘Minha mãe dobrava logo as roupas do varal para não precisar passar ferro’

“Acostumamos a dormir com todas as lâmpadas apagadas e os aparelhos eletrônicos todos desligados da tomada. Somente a geladeira ficava ligada.Até o freezer, minha mãe esvaziou para economizar energia. Tenha lembrança de ver minha mãe recolher a roupa do varal, dobrar logo em seguida, esticando e alisando com as mãos para que não fosse necessário passar. As únicas roupas que eram passadas eram as roupas de linho do meu pai, que ele usava todo domingo para ir aos ensaios da escola de samba e atualmente somente meu uniforme de trabalho é passado. 

Somos dependentes do fornecimento de energia elétrica, seja para dormir, por que o ventilador está sempre ligado, seja para a nossa higiene, pelo uso do chuveiro elétrico, para conservar e preparar a alimentação, enfim, até para o lazer. 

Não trabalho exatamente em home office, mas mantenho contato diário e constante com as pessoas com as quais eu trabalho, então, tenho dependência da Internet, para pesquisar receitas, assistir vídeos, trocar informações sobre a programação para a execução das minhas atividades profissionais. 

O principal impacto seria no uso de ventiladores durante o dia, a minha casa acaba recebendo o sol da tarde, e a casa fica muito abafada e pra amenizar o calor nós utilizamos os ventiladores. Ter que racionar vai ser passar a conviver com o calor extremo para que a redução seja efetiva, além de diminuir o uso de microondas, forno elétrico e retirar os demais eletros das tomadas quando não estiverem em uso”. 

Clara Freire, 24 anos, chef de cozinha

‘A coisa ficou ainda mais complicada para os artistas’

"Do ponto de vista da produção artístico-cultural, eu não lembro de detalhes, mas lembro que ficou ainda mais difícil para a galera que não tinha grana para promover arte e cultura. Me lembro bem porque (o Teatro) Acbeu tinha esse compromisso de ter parte das pautas destinadas a produtos culturais com mérito artístico que não tinham condição de pagar. Quando a gente teve que racionar energia elétrica, teve que priorizar quem tinha grana para pagar porque, quando a gente cedia a pauta, a gente tinha que bancar o consumo de energia. O que o produtor ia pagar não pagava a conta do teatro e o consumo de energia elétrica era um dos maiores gastos que o teatro tinha para funcionar. Ar-condicionado, refletores, tudo muito caro. E quando Acbeu abria mão ou flexibilizava esses fatores, estava pagando essa conta. No momento do racionamento, a gente não podia bancar, a gente tinha que racionar. Então a coisa ficou ainda  mais complicada para os artistas. Os artistas só se lascam, o tempo inteiro, ainda mais agora. Desde que trabalho com arte e cultura, não me lembro de um momento como esse que eu presenciei. Imagine com uma nova crise agora que os teatros estão dando seus pulos, tentando abrir de leve. Catástrofe atrás de catástrofe para a cultura. 

Durante a pandemia, eu voltei a trabalhar em casa. No meu trabalho como chef de cozinha, eu faço várias coisas, dava treinamento para colaboradoras domésticas na casa das minhas clientes. Ia  para tudo quanto é canto da cidade. Fazia celebrações na casa das pessoas, cozinhava na casa das pessoas, montava restaurantes dentro de atividade de arte e cultura. Com a pandemia, eu voltei a  trabalhar em casa, fazendo exclusivamente congelamentos particulares mensais, um dia para cada cliente. Passei a pandemia inteira fazendo isso.

Agora eu já sofri o impacto altíssimo do aumento da energia elétrica. Já parei totalmente de fazer congelamento aqui em casa e um dos motivos foi a conta de luz, pelo freezer funcionando. Moro com meu filho, meu namorado eventualmente está aqui em casa e minha conta de luz chega perto de R$ 300. É uma coisa insólita para mim. Uma realidade louca, até pouco tempo gastava menos de R$ 200. Estourou e grande parte disso atribuo ao freezer . Agora que estou voltando a para a rua para algumas coisas, como congelar na casa dos clientes e estou mais dedicada à escrita e conteúdo digital, decidi parar com o congelamento. A semana passada foi a última que congelei e muito pela conta de luz".

Kátia Najara, chef de cozinha, empreendedora criativa e colunista do CORREIO. Era diretora do Teatro Acbeu em 2001.