Licença para criar: pais acompanham seus bebês de perto na quarentena

Tema provoca debate sobre os papéis na criação dos filhos; confira os relatos

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  • Laura Fernades

Publicado em 9 de janeiro de 2021 às 06:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Nara Gentil

Quando o filho sentou pela primeira vez, o pai estava lá. Quando tomou o primeiro banho, comeu a primeira fruta e balbuciou as primeiras palavras, ele também estava lá. Nas madrugadas mal dormidas da mãe, olha ele lá. E nas fraldas carregadas? Adivinhem: estava lá. Essa é a rotina do arquiteto Turambey Macedo, 35 anos, mas virou a realidade de muitos pais na pandemia. 

Seja por conta da quarentena ou do home office, pais e mães têm tido a oportunidade de ficar mais tempo em casa nos primeiros meses de vida dos filhos. É quase como se vivessem uma licença-paternidade e licença-maternidade ampliadas, independente de ter uma carteira assinada. Muita coisa mudou. Enquanto as mães adiaram a crise que antecede o retorno ao trabalho presencial, os pais se depararam com uma oportunidade única. 

No lugar dos cinco dias oficiais da licença-paternidade, muitos acompanharam de perto os primeiros meses de vida do filho. E quais são os aprendizados e experiências desse contato prolongado? Quais são os desafios? Conversamos com pais, mães e especialistas para entender o que se pode aprender com o atual momento e quais são os papéis de cada um na criação dos filhos dentro dessa realidade. 

Afinal, pais e mães se viram separados de suas famílias pela pandemia da covid-19 e do suporte necessário à rotina de um recém-nascido. O que fazer? Nos dez relatos que colhemos, não foi raro ver casais que redistribuíram as tarefas entre si e se adaptaram à nova realidade sem ninguém para dar apoio. “Como ela ia fazer tudo isso sozinha?”, indagou o personagem do início do texto, diante das demandas da  mãe recém-parida. O arquiteto Turambey Macedo acompanhou de perto o desenvolvimento do filho Otto, 10 meses, durante os quatro primeiros meses (Foto: Nara Gentil) Sobrecarga  Dar banho, trocar fralda, acordar de madrugada, dar remédio, lavar e passar a roupa do bebê são algumas das atividades que se somam à faxina de casa, ao ato de cozinhar e pensar no mercado. Historicamente, são tarefas associadas à mulher que,  quando o marido volta a trabalhar depois de cinco dias do recém-nascido, muitas vezes nem se recuperou do parto - às vezes um pós-operatório delicado. 

“É um contexto atípico ter os pais e mães em casa. Acho mais justo. A licença da mulher de 120 dias e de um pai de cinco dias sobrecarrega a mulher, coloca ela nos cuidados da casa, dos filhos e muitas vezes dos parentes idosos que moram em casa”, destaca a advogada e pós-graduanda em Direito das Mulheres Samantha Carvalho, integrante da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na Bahia. 

Apesar das perdas e tristezas da pandemia, Samantha acha que esse é um momento de reflexão importante sobre os papéis de cada um. Afinal, mulheres gastam o dobro de tempo realizando atividades domésticas, aponta um estudo feito ao longo de dez anos e publicado no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2016. São 27 horas para elas e 11,5 horas para eles.

A mulher ficava em casa no passado, lembra a advogada, e quando foi trabalhar na rua, continuou com os afazeres domésticos. “Os homens não”, sinaliza. “A diferença é gritante. A mulher tem menos tempo livre. Os homens acabam podendo se dedicar mais ao lazer e à vida profissional. Por isso, acho importante que haja um compartilhamento mais igualitário das funções”, defende. 

Autor do livro Quando Somos um Só, sobre a relação entre pais e filhos, o psicólogo Alessandro Marimpietri acredita que o mundo ainda está longe da equidade entre papéis. “Claro que, se compararmos com 50 anos atrás, o cenário hoje é mais promissor. Entretanto, infelizmente, as mulheres seguem sobrecarregadas e vulneradas por uma lógica que urge mudar”, lamenta o psicólogo. Apesar dos avanços, a realidade atual ainda é delicada, em sua opinião, já que em famílias que contam com a presença dos pais, o mais comum é a discrepância entre a participação da mulher e do homem na vida dos filhos. Isso sem contar com as famílias monoparentais que, em sua maioria, têm a mulher como líder que cuida sozinha do lar.

Do primeiro banho aos primeiros passos: pais contam como é estar perto de seus bebês

Licença-parental  Uma das lições da quarentena, portanto, é perceber a histórica divisão sexual do trabalho. Ou seja, a divisão de papéis de gênero que já são impostas em contextos como casa e trabalho. É assim que se naturaliza padrões do tipo:  “A mulher tem que ficar com os filhos” e “Ela está acostumada com o serviço doméstico” e “As mulheres são preteridas desde a contratação”, alerta Samantha. Por exemplo, são sempre questionadas em uma entrevista de emprego sobre com quem deixa os filhos. 

Por isso, outros tipos de licença têm ganhado fôlego ao redor do mundo. Na Espanha, começou a valer em 1º de janeiro a licença-paternidade de quatro meses, igualando os direitos para homens e mulheres. Outro país da Europa que se destaca é a Islândia, com sua licença-parental que dá nove meses para o casal. 

São três meses para a mãe e três meses para o pai, obrigatórios, além de três meses em que os dois decidem com quem o bebê vai ficar. “Isso é bom na hora da contratação”, aprova Samantha, enquanto destaca, em tom de alerta, que 48% das mães ficam desempregadas no primeiro ano após o parto. 

“Espero que homens e mulheres compreendam que não precisam ser responsáveis exclusivos do lar, dos cuidados com os filhos. A mulher sempre foi colocada nesse estereótipo de ‘cuidadosa, doce, amorosa’. Mas os homens também podem ser”, pondera. “Não é normal a mulher abrir mão de tudo e o marido não abrir mão de nada”, provoca. 

Pai de Lucca, 8 anos, o psicólogo Marimpietri reforça a importância de não encarar a divisão de trabalhos como uma “ajuda”. “Pais devem, sim, assumir em igualdade de deveres e direitos a criação. Quando ‘ajudo’, parto do pressuposto de que a responsabilidade é da mulher, e isso cria um ‘nunca desligar’  que produz uma sobrecarga silenciosa extremamente danosa para a saúde dela”, alerta.

Marimpietri defende que a pandemia não deve ser comemorada por ser “uma calamidade sanitária sem precedentes”, mas o fato de pais poderem ficar o máximo de tempo com seus bebês é fundamental. “Se trata de algo que é crucial para a saúde do bebê, mas que também contribui muito para os pais e para toda sociedade”, justifica. 

“Quando priorizamos a cultura da infância e garantimos, como ato político, essa prioridade, permitindo que os pais, e não somente as mães, fiquem de licença para cuidar dos seus filhos, de alguma maneira isso cuida de todas as infâncias e de todos os adultos que não têm filhos. Sabemos que os benefícios são incontestes em todos os âmbitos da vida humana”, argumenta. 

Revolução Sem dúvida, o exercício da parentalidade sofreu mudanças significativas com a pandemia. Pais e mães passaram a experimentar a presença contínua dos bebês, o que trouxe desafios e consequências positivas. Entre elas, estão a revisão de tarefas, os cuidados compartilhados, o acompanhamento do desenvolvimento e o fortalecimento da cumplicidade do casal. 

Com a covid, a ‘licença-paternidade’ sai de dias para meses. “É uma superconquista, porque o pai precisa ser inserido na tríade pai-mãe-bebê”, comemora a psicóloga Elisa Teixeira. Líder do serviço de psicologia do Hospital Português, com atuação na Maternidade Santamaria, Elisa explica que, nos seis primeiros meses, é importante evitar que o tempo do bebê seja 100% exclusivo com a mãe 100%.

O pai cumpre esse papel, assim como o trabalho fora de casa e a presença dos avós. “O acesso sem alternância – quando o bebê chora e a mamãe vem – tem uma marca para o desenvolvimento da criança que pode ser prejudicial. Uma criança que não lida com ausência é uma criança insegura. A alternância  é muito importante para a construção psíquica do bebê”, alerta. 

Ao mesmo tempo em que aproxima, o contato prolongado também pode atrapalhar. Impor limites dentro de casa fica muito mais difícil na quarentena, e a rotina do bebê acaba colada com a da mãe. “Nesse caso, a alternância se faz mais necessária para a saúde mental de ambos – mãe e filho. Mas com o processo de home office isso fica mais delicado”, pondera Elisa. 

Machismo  Nos quatro primeiros meses do bebê, a relação é tão umbilical que o pequeno “ainda não consegue entender que ele e a mãe não são uma pessoa só”, explica a psicóloga. Por isso, a volta ao trabalho acaba sendo muito brusca para a mulher, que passa 100% do tempo com o filho durante os quatro meses iniciais e no quinto se vê obrigada a voltar para uma rotina intensa. 

“Tudo bem que existe a licença-amamentação de uma hora, mas mesmo assim muitas vezes a jornada é de seis ou oito horas por dia, com trânsito”, acrescenta Elisa. Para ela, o ideal seria uma licença-maternidade de seis meses, com retorno fracionado ao trabalho, e licença-paternidade de, pelo menos, quatro meses. 

Essa não é a realidade brasileiras, mas o atual cenário faz com que os pais estejam mais próximos da rotina dos recém-nascidos e das demandas de casa. Apesar disso, há muito o que avançar, alerta Samantha Carvalho. O panorama que as pesquisas trazem sobre o tem é bem grave, explica a advogada, e ainda há um número alarmante de mães solteiras, em sua maioria de periferia, que cuidam sozinhas dos filhos.

“Que pais são esses?”, questiona a advogada, ao defender a importância de considerar todos os marcadores sociais. A pandemia, em sua opinião, aprofundou as desigualdades, o machismo e a sobrecarga da mulher. “As mulheres sempre tiveram a tripla jornada e agora estão com jornadas ainda piores na pandemia”, pondera.

“O machismo existe. Ele é estrutural e estruturante. Os pais em casa, dentro de uma pandemia, estão fazendo alguma coisa. Nesse contexto de isolamento, eles estão sendo postos a outras demandas para se movimentar. Mas não sei se, após a pandemia, teremos mudanças significativas de modo permanente. Afinal, temos uma lei que prejudica as mulheres, e os dados ainda são muito cruéis”, reflete.

Paternidade e maternidade em números

48% das mães ficam desempregadas no primeiro ano após o parto (Fonte: Pesquisa FGV-EPGE 2017)

70% das trabalhadoras domésticas não têm garantidos direitos básicos, como licença-maternidade ou médica, férias remuneradas, 13º ou aposentadoria (Fonte: Ipea 2016)

120 dias é o prazo da licença-maternidade no Brasil (Artigo 7°, inciso XVIII, Constituição Federal)

5 dias é o prazo da licença-paternidade no Brasil (Artigo 7°, inciso IX, Constituição Federal)

15 dias é a prorrogação da licença-paternidade prevista na lei para as empresas que aderiram ao programa Empresa Cidadã