Luxo, poder e glória: não tenho diêru nem coleciono 'seguidores', mas meu filho sabe conversar

É mesmo com alguma soberba que não apenas conto a história, mas também me gabo

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  • Da Redação

Publicado em 29 de janeiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo pessoal

Este artigo é dedicado ao jornalista Alexandre Lyrio que disse, no post onde comentei o fato: "vale um artigo". Registrei. Também achei, mas fiquei na minha. Nesta semana, observando as discussões "cancela a música, foi o próprio Chico, foram as feministas, cancela as feministas, cancela esquerdomachos" e ligada mais na aridez do looping coletivo do que no objeto (que, pra mim, já é assunto antigo, me poupem), resolvi escrever.

Tá faltando esquina e honestidade intelectual, além de capacidade de argumentação, essa belíssima habilidade humana cada vez mais rara. Felizmente, tenho em casa e é mesmo com alguma soberba que não apenas conto a história, mas também me gabo. Principalmente, pelas características dos envolvidos. Ou, pelo menos, eu não me lembro de, aos dez anos, ter discutido com um adulto o conceito de terrorismo de Estado. Luxo, poder e glória: conforme você vai ver a seguir, não tenho diêru nem coleciono "seguidores", mas meu filho sabe conversar.

"O assassinato de Marighella foi terrorismo de Estado". Eis a frase que escutei, alta e clara, na voz entre infantil e adolescente, própria da idade. Eu estava longe do papo, mas apurei os ouvidos que eu não perderia essa performance de Leo por nada. Do outro lado, veio o contraditório: que não se podia nomear dessa maneira o fato. Posto o impasse, congelei escondidinha, escutando sem ser percebida, e pensando "vai, filho, mostra o que você sabe". Sendo "o que você sabe", na minha "frase torcida", bem mais a forma do que o conteúdo, no caso.

Desse modo, pouco preocupada com quem "venceria" a discussão, mais me ocupei de observar o rumo da prosa. Em cinco minutos, eu já havia explodido de orgulho. Sério. Dei pulinhos atrás da parede, ri sozinha e tive que conter gritinhos histéricos. Para quem, como eu, leva a sério comunicação e maternidade, aquele foi um marco pra não esquecer jamais.

Olha o caminho do cara: postos os fatos históricos, passou a conduzir a conversa para fora do terreno do "eu acho". Bingo. É assim que se faz. Daí, com toda a calma e de forma bem respeitosa, foi direto para a semântica, apelando até para consultar dicionário. Aqui, o orgulho que sinto do meu filho precisa abrir espaço para o reconhecimento da saúde mental do adulto com quem ele interagia. Muito diferente da maioria que só se propõe a "ensinar", monologar e competir  - acabando por desencorajar pequenos pensadores - o homem se propôs a respeitar o percurso oferecido por Leo, suas pesquisas em história e seus dez anos de idade.

Vieram os contra argumentos, só que frágeis, diante da linha de raciocínio que foi se encorpando e, a essa altura, já tinha bastante densidade. No fim, escutei do adulto, além de elogios à capacidade de argumentação do meu filho: "parabéns, Leo, você me convenceu, tive que rebobinar meus argumentos pra dentro de volta, o assassinato de Marighella foi, sim, terrorismo de Estado". E tudo certo. Lindo demais.

Foi massa que ele "ganhou" a discussão e muito me alegra que o desfecho da conversa tenha sido a verdade. Mas, olhe, a vitória foi bem maior do que isso, aqui para a mãe que vos fala. A delícia que é, em tempos tão rasos, ter um filho capaz de pensar e, mais ainda, argumentar com profundidade. Sem alterar a voz. Escutando com atenção, do mesmo modo que gosta de ser escutado. Sem interromper a fala do interlocutor. Sim, meu filho nasceu terreno fértil, tive muita sorte. Mas - mãe solo - também reconheço a parte que me cabe e faço uma festa por dentro ao entender que meu mais importante projeto é um sucesso retumbante.

Com todo o respeito à educação formal, à genética, aos amigos, aos avós, ao pai e demais participações especialíssimas e essenciais, tem coisas que a gente faz é em casa no "todo dia".  É acordando e dormindo juntos, é nas esquinas desafiadoras da rotina. É, principalmente, desafiando o cansaço, o comodismo, abrindo mão do jeito "mais fácil", se responsabilizando, assumindo, trabalhando duro na formação de um humano, estando ao lado. Isso, caro/a leitor/a, modéstia às favas, quem faz sou eu. Desde o primeiro dia e com prazer demais.

Reconheço, nessa habilidade do meu filho, além da natureza dele, o resultado de um exercício cotidiano, da minha repetição da ideia "me convença, mas não pela birra nem pelo grito, nem pelo cansaço, me explique, argumente". A pessoa que eu pari e cuido é treinada para se expressar sem se desequilibrar, estruturando argumentos, desde que começou a reivindicar direitos na nossa relação. Há muitos anos, peço pra ele exercitar fala e escuta, observar, respirar, buscar honestidade e respeito. Perdi a conta das vezes em que ele saiu chateado, foi pro quarto, voltou com o discurso organizado, sentou e conversou como gente. Conseguindo.

(Sendo que, agora, felizmente, ele já é melhor do que eu. Escuto, muitas vezes, quando o equilíbrio me falta (acontece): "você pode sentar aqui e conversar normal comigo?")

(Posso, né? Preciso. Devo. Obrigada.)

Mandarim? Não, ele não estuda. Nem tem qualquer graduação em artes marciais. Mora numa cidade pequena, nunca frequentou um colégio genial. A agenda dele não se parece em nada com as de muitas crianças da mesma idade que já têm quantidade de compromissos equivalente à de executivos de multinacionais. Nada contra, mas aqui se preza "insetos mais que aviões, a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis". Tempo livre, estar junto, observar, buscar o conhecimento que der prazer, bichos, convivência com os avós, os/as amigos/as, afazeres de casa, colo. Viver.

Também discutir perseverança num jogo besta de dominó. Ou falar sobre violência de gênero porque ouvimos uma frase da música que dizia "se eu não pego (a ex-mulher) ninguém vai pegar". Isso, pra mim, é educar. Posso ser muito coruja, só que quando olho ao redor, vejo que ele ainda é um menino, mas tem dos melhores papos que conheço. Comparo, claro. Não com outras crianças, mas com gente maior de idade que, simplesmente, não sabe... conversar!

Conversando com meu filho, percebo que, aos dez anos, ele já tem uma habilidade que a maioria dos adultos jamais vai conquistar. Lamento por esse nível de incivilidade e sei lá qual é a sequência de erros que resulta numa deficiência coletiva tão grave. Ou até desconfio, mas, hoje, não quero falar. Tô aqui fazendo a minha parte, colhendo os frutos e essa alegria, por ora, me basta.

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo.