Mãe Gilda: vida e morte de luta e resistência contra a intolerância religiosa

Busto em homenagem à Ialorixá, falecida em 2000, foi vandalizado pela segunda vez em dois anos

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 17 de julho de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Quanto custa a intolerância? Para a  ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, custou a vida. Seus problemas de saúde se agravaram em decorrência dos ataques de ódio e agressões verbais e físicas que sofreu de seguidores da Assembleia de Deus dentro de seu próprio terreiro, em Itapuã.

Aquela não foi a primeira vez que mãe Gilda foi vítima de intolerância religiosa e, mesmo após sua morte, também não foi a única. Na última quarta-feira (15), o busto que foi erguido em sua homenagem dentro do Parque do Abaeté foi alvo de vandalismo. O autor do crime, que não teve a identidade revelada, foi preso e disse que apedrejou o busto "a mando de Deus".

Não foi a primeira vez que isso aconteceu já que em 2016 o busto também foi vandalizado por intolerância religiosa. É o que lembra Mãe Jaciara, filha de Mãe Gilda e atual ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum em Salvador. Naquela ocasião, foram necessários seis meses até fazer a restauração do monumento. Filha de Mãe Gilda alega que o vândalo dizia que depredeu o monumento a mando de Deus (Foto: Marina Silva/CORREIO) Mãe Jaciara conta que ficou preocupada porque o Boletim de Ocorrência não registrou o caso como de intolerância religiosa, senão como vandalismo. Em 2020, sete casos de intolerância religiosa foram contabilizados pelo Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela - equipamento vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi) que oferece apoio psicológico, social e jurídico a vítimas de racismo e intolerância religiosa na Bahia, desde  dezembro de 2013.

A média neste ano é de um caso por mês, mas de acordo com o Centro de Referência existe uma subnotificação que é explícita e acontece porque as vítimas sentem vergonha e receio de denunciar os crimes. Em todo o ano de 2019, foram 49 casos registrados pela Sepromi, o que dá uma média levemente superior a quatro casos por mês.

O Centro também monitora o número de ataques a templos e monumentos de matriz africana. Entre 2019 e 2020 foram dez casos. Além do Busto de Mãe Gilda, monumentos como a Pedra de Xangô e o do Mãe Stella de Oxóssi também foram vandalizados.

Já os terreiros foram o Oxumarê, Aganju Didè (Icimimó) (Cachoeira), Torrun Gunan (Fazenda Coutos), Terreiro Húnkpame Karè Lewí Xwè (Fazenda Grande IV), Obatalandê (Lauro de Freitas), Oyá L’adê Inan (Alagoinhas) e a Casa do Mensageiro em Barra do Pojuca.

Mãe Jaciara conta que o homem que depredou o busto alegava que fez aquilo "a mando de Deus" e lamentou que mesmo após 21 anos da morte de sua mãe o ódio contra as religiões de matriz africana não acaba."Ele disse que foi a mando de Deus [que vandalizou o busto]. Que Deus é esse?", questiona Mãe Jaciara.Responsável pelas investigações do caso, a Polícia Civil afirmou em nota que o vândalo é morador de rua e apresentava sinais de distúrbio mental e disse que ele "não deixou claro o motivo do ato". O caso continuará sendo apurado pela 12ª Delegacia Territorial (DT), de Itapuã.

Restauração Um equipe da Fundação Gregório de Matos (FGM) esteve no local para realizar uma visita técnica e levantar informações para realizar os reparos necessários no busto.

Diretora de Patrimômio e Humanidades da FGM, Milena Tavares disse que o busto de bronze ficou com algumas marcas causas pelo atrito das pedras e cacos de telha arremessados contra o monumento."Avalio que só há como minimizar os danos realizando uma limpeza adequada no metal. Iremos orçar e avaliar a possibilidade de atender no ano em curso", disse.Presidente da FGM, Fernando Guerreiro também esteve no local afirma que "é preciso coibir estas ações de vândalos fanáticos, que em nome de um credo, não respeitam o direito de cada cidadão de ter liberdade de escolha. Além disso, destroem o patrimônio de nossa cidade, contribuindo com a escalada de uma violência ignorante e insana". Fundação Gregório de Mattos e Sepromi se colocaram à disposição para restaurar o busto (Foto: Marina Silva/CORREIO) Responsável pela gestão do Parque Metropolitano Lagoas e Dunas do Abaeté, o Inema afirmou que é contra toda e qualquer manifestação de intolerância religiosa e que está estudando as medidas de restauração do busto, mas ainda não sabe precisar de que forma isso acontecerá porque o acontecimento ainda é muito recente.

Secretária de Promoção da Igualdade, Fabya Reis colocou a Sepromi à disposição para ajudar a fazer os reparos do busto neste segundo ato de vandalismo que sofreu.

Mãe Gilda Símbolo da luta contra a intolerância religiosa, a ialorixá Gildásia dos Santos e Santos é fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de Candomblé localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté. A data de seu falecimento, 21 de janeiro, é conhecida como o Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa desde 2007.

Mãe Gilda sofreu diversos ataques por conta de sua religião durante sua vida. Além das agressões que culminaram em sua morte, ela teve sua imagem utilizada no jornal Folha Universal, vinculado à Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), em 1999 com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Na época, a reportagem dizia que estava crescendo um "mercado de enganação" no país. Nela, a imagem de mãe Gilda aparecia com uma tarja preta nos olhos.

Entidade responsável por representar e defender grupos de minorias oprimidas historicamente, a Koinonia passou a representar a família na luta por justiça. A morte de Mãe Gilda aconteceu no dia da assinatura da procuração que constituiu seus advogados para defendê-la no caso, que acabou com a Iurd condenada em primeira instância em 2004 e condenou a Igreja a indenizar a família em mais de R$ 1 milhão.

O caso foi para a segunda instância e no mesmo ano o Tribunal de Justiça da Bahia julgou e condenou a Iurd em decisão unânime por danos morais e uso indevido da imagem da ialorixá Mãe Gilda.

O julgamento ainda foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), onde ficou até setembro de 2008. Os magistérios da instância máxima também condenaram a Iurd, mas a indenização foi reduzida para menos de R$ 150 mil.