Mães Paralelas e a avassaladora beleza dos humanos que se expõem

Tá me dando agonia ler, em todo canto, que é um filme "feminista", "sobre mulheres"  ou "sobre a inutilidade masculina"

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  • Da Redação

Publicado em 26 de fevereiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Filmes não são feitos apenas para críticos de cinema, então é desse lugar - o de espectadora comum - que escrevo sobre o mais recente de Almodóvar. Mesmo sabendo dos limites de um repertório que nunca esteve à altura dos papos com amigos/as cineastas (me falta memória, inclusive), entro no jogo porque tá me dando agonia ler, em todo canto, que é um filme "feminista", "sobre mulheres" ou "sobre a inutilidade masculina". É não. Ou eu assisti outra coisa achando que era Mães Paralelas.

O que eu vi é um filme onde todos os personagens principais parecem fazer análise. Há anos. Daquela que nos aprofunda e nos deixa, no mínimo, cientes das esquinas nossas e do outro. Que atenua juízos de valor e nos leva ao que importa. Que, pelo menos, traz à consciência os contratos com a mediocridade que se apresentam todos os dias. Podemos assinar ou rasgar. Escolhas. Esse é o ponto. É a novidade, o espanto, o deslumbramento e a "moral da história" se é que ainda se usa essa expressão. 

Sim, a história começa com o drama de duas mulheres que têm as vidas cruzadas na ante-sala de parto, num hospital de Madri. Certo, ambas têm trajetórias impactadas pela atuação negativa do masculino (coletivo e individual) padrão, como quase todas nós. Mas isso está posto, quase como cenário, da mesma maneira que o pano de fundo das repercussões da guerra (testosterona, algo masculino, eu sei) civil espanhola. É o que é. É a vida como acontece. São as circunstâncias daquelas pessoas.

Entender essas questões como eixo central me parece quase confundir cenário com roteiro. O que transforma esse filme numa coisa incrível vai muito além da eterna tensão entre gêneros ou do resgate de ossadas e memórias de parentes mortos - e enterrados em covas rasas - pelos falangistas. Ainda que tudo importe porque, claro, é um Almodóvar e nada está ali por acaso. 

A maternidade - e todos os sentimentos extremos que essa experiência nos provoca - é a bomba que explode e faz o recorte temporal. Parir - e suas consequências - deflagra a exacerbação daquelas duas pessoas. Motivação, situação, "lidem com isso", "sejam nisso". A partir dali é que elas acontecem pra gente e Mães Paralelas passa a tratar da avassaladora beleza dos humanos que se expõem. Com uma naturalidade emocionante. 

Observe - e esse será meu único spoiller - que nenhum personagem mente a respeito do que é nem se perde na inconsciência da projeção do que o outro seja. Também que todos (todos!) erram e acertam, a depender. Assim, a cada diálogo, a cada interação, você vai sendo levado/a para um mundo onde nada do que é humano é estranho, como disse aquele rapaz. 

Isso foi me despertando um conforto, um amor e uma esperança que nem sei te contar. É a vida adulta plena das belezas só possíveis na idade adulta. São assim as conversas que gosto de ter, são assim as relações que me excitam. Coisa difícil de conseguir. Ver isso no filme me toca porque é exatamente de encontros desse quilate que tenho saudade. Desde que nasci. 

(A amiga/irmã que me disse "assista hoje" falou justamente desse impacto que, por identificação, o filme causaria em mim.)

(Acertou.) 

(No mesmo tema, para essa amiga: como é gostoso ver e ser visto/a, né não? É sim.) 

Naquelas duas horas, muitas das maiores dores e alguns dos grandes desafios que podem ser enfrentados por pessoas são propostos. Porém, a serenidade da carne viva, da exposição plena, da verdade é o fio que conduz a todos. Nada é "assunto proibido", nada é silêncio vazio, nada é irreversível, nada é perda total, vergonha, abandono ou ridículo. 

Ninguém é mesquinho com ninguém, nem nos maiores erros. O olhar profundo para o outro - que também vem de lá inteiro - faz belíssimos desfechos. A genialidade do roteiro está, também, em mostrar que essa é uma possibilidade real de existência.Todos/as podemos ser maiores do que temos sido, é o que ele parece querer nos dizer. 

Meu amigo Marcelo me falou "nada importa, é tudo bobagem", outro dia, aqui em casa. Sábio que é, ele falava do miudinho que atravanca tantos dos nossos espaços internos. Isso não tem a ver com deus(es), "vida passa rápido" ou qualquer clichê/dispositivo regulatório de conduta humana. Que tudo isso também é bobagem, como nos propõe Almodóvar num filme de cores, gestos e falas "acalmados", palavra que meu filho usa. Ele, Almodóvar, não é mais o mesmo, o que é estranhamente bom. 

Nem eu sou a mesma, depois desse filme, mais um marco entre as tantas coisas que me modificam. Mais um passo desta formiguinha que vos escreve, emocionada por lembrar da grande viagem que podemos ser em encontros originais com nós mesmos e com o outro. Esse voo que tantas vezes perdemos, distraídos/as por vaidades, pudores e outras coisinhas pequenas, também humanas, que estão em todos/as nós. Mas estes são obstáculos a vencer e não lugares para estar e chamar de vida.

Mães Paralelas é um grande filme de muitas camadas. Um desafio de compreensão e, a mim, não seduziu o caminho mais fácil. Não sei se entendi, mas nem tudo me parece estar escrito na camiseta da protagonista, em faixas e outdoors por aí. Melhor assim. Se puder, assista. Tá no Netflix.

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo