Mais de 200 casarões em Salvador apresentam risco alto de desabamento ou incêndio

Na terça, um casarão na Ladeira Pau da Bandeira, que teve a demolição autorizada pelo Iphan desde julho, desabou parcialmente

Publicado em 20 de agosto de 2020 às 05:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Tiago Caldas/CORREIO

Sem manutenção, o casarão da Ladeira Pau da Bandeira desabou parcialmente sobre a Ladeira da Montanha, no Centro de Salvador, no final da tarde da última terça-feira (18), sem deixar vítimas. Outros casararões da capital baiana também sofrem com os impactos do tempo. Ao todo, a cidade possui 1.295 imóveis do tipo vistoriados e cadastrados pela Defesa Civil (Codesal) do município, dos quais 131 apresentam risco muito alto de desabamento ou incêndio e 237 possuem risco alto.

Grande parte dos casarões cadastrados está ocupada - apenas 24% dos imóveis não têm ocupação. Abandonado, o edifício de meados do século 19 que desabou no centro histórico começará a ser demolido pelo seu proprietário nesta quinta (20). A edificação faz parte do Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico do Centro Histórico da cidade de Salvador tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1984.

O imóvel possuía alto risco de desabamento, o que levou o Iphan, responsável por fiscalizar todos os bens tombados, a autorizar a demolição do edifício por parte do proprietário em 16 de julho deste ano visando evitar o comprometimento de outras construções da área e riscos para a vida humana.

Em nota, o instituto diz acompanhar a situação da construção histórica desde o ano passado em conjunto com a Codesal. “Diversas vistorias foram realizadas no local. A mais recente foi realizada pela Defesa Civil e por engenheiros estruturalistas especializados, no mês de julho, estes últimos contratados pelos responsáveis pelo imóvel e cujo laudo produzido atestou a falência estrutural do edifício”, explicou o Iphan.

De acordo com a Defesa Civil, o desabamento parcial é resultado da falta de manutenção predial. O casarão estava escorado, mas a estrutura de sustentação era antiga e já não cumpria sua função, afirmou o diretor-geral da Codesal, Sosthenes Macêdo. “A edificação estava em um nível de risco elevado e solicitamos a demolição. Só ficamos sabendo da liberação para a demolição na semana passada. O dono do imóvel tinha afirmado que ia começar o processo no próximo sábado, mas o desabamento ocorreu antes”, disse.

Projeto Casarões Em Salvador, as ações voltadas para promover a conservação dos casarões ocorrem por meio do Projeto Casarões, segundo a subcoordenadora de Áreas de Riscos da Codesal, a engenheira Rita Jane Moraes. De acordo com ela, o projeto tem como objetivo levantar a realidade dessas construções e contribuir para sua preservação ou eliminação do risco com a realização das intervenções necessárias. 

"Quando identificamos os proprietários, procedemos a notificação para dar ciência do risco e responsabilizá-los para executar a manutenção predial ao tempo que encaminhamos a situação para os órgãos tombadores (Iphan ou Ipac) para que realizem intervenções ou responsabilizem os proprietários", explica Rita Moraes. 

Ainda de acordo com a subcoordenadora, a Defesa Civil articula com outros órgãos municipais para realizar a demolição total ou parcial do imóvel em caso de risco iminente e na impossibilidade do proprietário fazer a manutenção ou não ser identificado. Segundo a Codesal, a situação dos casarões cadastrados é atualizada anualmente.

Incêndio Segundo o Iphan, o imóvel já sofreu um incêndio e foi escorado há cerca de dez anos pela prefeitura de Salvador. O instituto informou que o casarão da Ladeira Pau da Bandeira já apresentava patologias severas quando foi escorado, as quais se agravaram com o tempo até a falência estrutural dos elementos e o desmoronamento parcial do edifício. Neste caso, o escoramento não foi suficiente para manter a edificação estável.

Em nota, o instituto aponta que escoramento de edificações é uma solução válida para garantir a preservação da edificação e para garantir a segurança da população, mas, devido a sua baixa durabilidade, é uma solução provisória até que seja realizada a recuperação ou restauração do imóvel.  Escombros do casarão caíram na Ladeira da Montanha (Tiago Caldas/CORREIO) O dono do imóvel pode ser multado pelo Iphan em razão do arruinamento da edificação. Em nota, o instituto afirmou realizar “ações de fiscalização para identificar os responsáveis e aplicar sanções administrativas e judiciais contra os proprietários pela falta de conservação dos imóveis, uma vez que a responsabilidade pela conservação e manutenção dos edifícios é de seu proprietário, que está sujeito a sanções administrativas e judiciais em caso de abandono”.

História Secular, é provável que o casarão tenha pertencido a alguém importante da sociedade baiana de meados do século 19. “Por estar em uma região como aquela, de frente para a Baía de Todos-os-Santos e ao lado do Palácio Rio Branco, o imóvel deve ter pertencido a pessoas de prestígio, mas isso não quer dizer ele não tenha tido outros usos. Temos relatos da época que mostram que diversos sobrados antigos eram divididos e alugados. Em alguns casos, diferentes membros da família morava em um andar”, informou o historiador Rafael Dantas.

Em meados do século 19, a região do centro histórico onde o imóvel foi construído era o local de comércio e moradia dos soteropolitanos. “Era um lugar privilegiado e, por isso, a construção pode ter sido usada para o comércio”, disse Dantas. Com a chegada do século 20, a dinâmica da cidade começou a mudar com as construções das avenidas de vale e da paralela em meados daquele período. As novas vias permitiram a expansão da cidade, o que iniciou o processo de esquecimento do centro.

“As novas avenidas permitiram que outras regiões sejam ocupadas, com novos espaços de moradia, lazer, economia e política. Foi neste período que ocorreu a inauguração do Centro Administrativo da Bahia e do Shopping Iguatemi [atualmente Shopping da Bahia]. Com a inauguração, as atividades de comércio e serviço foram atraídas para o Iguatemi e a Tancredo Neves deixando o centro de lado. As secretarias de estado também vão sair do centro da cidade em direção ao CAB”, disse o historiador sobre o processo de declínio do Centro.

A mudança do foco de interesse dos consumidores do centro para outras áreas da capital começou o processo de esquecimento da região. Em meio a essa migração, o casarão também foi alterado, chegando a ganhar um novo andar e ter a varanda demolida. O imóvel que tinha uma característica do período colonial foi passando por reformas até ganhar estruturas mais modernas. “Era uma residência colonial, que, com o decorrer do século 20, foi perdendo suas características originais. Em meados do século 20, ele era um prédio que misturava estruturadas em concreto com resquícios de construções antigas do final do 19”, explicou Dantas, que ressaltou que as reformas foram motivadas pela vontade dos donos de acompanhar a modernidade.  Foto da década de 50 mostra o casarão bem conservado (Anthony Roy Worley/Coleção história do Brasil de Pedro Calmon) O Iphan indica que as diversas modificações internas e externas realizadas no edifício ao longo do século 20 levaram ao quadro de fragilidade da estrutura. “Ao longo de tempo, a edificação foi perdendo sua originalidade arquitetônica. Intervenções como fechamento e abertura de vãos, demolição de varandas e alteração da cobertura promoveram uma completa heterogeneidade de materiais nas elevações do imóvel que, no caso do sobrado, tem funções estruturais”, indicou o instituto.

O casarão também foi um local de boemia. Entre as décadas de 60 e 70, funcionou no edifício o tradicional bar “Varandá”, que era frequentado por diversos artistas e intelectuais da capital baiana, segundo o historiador Rafael Dantas. No período, o centro ainda era um lugar de relevância comercial e cultural de Salvador. “Era um bar muito conhecido da região quando a Rua Chile ainda tinha um comércio intenso”, contou o estudioso.

Não se sabe ao certo o que aconteceu com o casarão com o fechamento do bar. Segundo Dantas, o imóvel chegou a ser invadido entre o final da década de 90 e os anos 2000. 

Antes do imóvel Outras construções já existiam no local do imóvel antes do século 19. “Pela iconografia temos registro de que a região sempre teve um ou outro imóvel, inclusive, tínhamos uma imagem de prédios com três pavimentos no local. Aquela região é o eixo de onde surgiu a cidade de Salvador em 1549. Desde lá, as pessoas perambulam pela região”, disse o historiador.

O conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico localizado no centro histórico de Salvador, do qual o imóvel que desmoronou faz parte, é um dos mais importantes exemplares do urbanismo ultramarino português, afirmou o Iphan. “Aliada a uma topografia singular, a paisagem dessa área é formada basicamente por edifícios dos séculos XVI ao XIX, na qual se destacam os conjuntos monumentais da arquitetura religiosa, civil e militar”, informou o órgão em nota. 

Após ser tombado pelo Iphan, o conjunto teve a sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial foi ratificada pela Unesco em 1985.

*Com orientação da subeditora Clarissa Pacheco