Mais de 6,2 mil km: indígenas venezuelanos percorrem o Brasil e passam por Salvador

Família é composta por 14 pessoas da etnia Warao

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  • Thais Borges

Publicado em 19 de janeiro de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Roberto Abreu/CORREIO

Praça do Campo Grande, 5h do dia 16 de dezembro. Morador do Garcia, o professor Paul Regnier tinha saído para passear com o cachorro. Como de costume, deixara Nissô Fulni-ô solto. Acompanhado de perto pelo tutor, o animal guiava o caminho. Assim, é difícil de dizer se os eventos seguintes foram obra do acaso ou do faro atento do filhote de nove meses, batizado com um nome indígena da tribo brasileira Fulni-ô. 

Nissô levou Paul ao ponto da praça onde encontrou uma cena improvável: um grupo de nove pessoas – até aquele momento –, entre idosos, adultos e crianças. Cheios de malas, falavam espanhol e outra língua. Sem ter para onde ir, pediam informações sobre a cidade. Em poucos instantes, explicaram que queriam alugar uma quitinete no Centro. 

Eram refugiados venezuelanos. Só que, diferentemente de muitos nativos daquele país que vieram para Salvador tentar uma nova vida, o grupo agora era de indígenas. Da etnia Warao, de nômades, tinham chegado à capital baiana na noite anterior. Atualmente, estima-se que a Bahia tenha recebido mais de 400 venezuelanos após a crise política no país do presidente Nicolás Maduro, que começou a dar sinais ainda em 2012. 

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Mas, é a primeira vez que há registros de refugiados venezuelanos indígenas na cidade, de acordo com o Centro de Serviço ao Migrante da Unifacs. “A fronteira da Venezuela estava numa situação muito perigosa. Eu vim em janeiro com minha esposa e filhos e meu pai veio pouco depois (com os outros). Ele tinha sido sequestrado e estava correndo risco lá”, conta o venezuelano Aníbal Pere, 32. No grupo, é como se Aníbal fosse um líder informal, até por ser um dos que mais fala português. Em todo o Brasil, pelo menos 200 mil venezuelanos chegaram desde 2017, de forma geral, de acordo com a Polícia Federal. Os Warao, segunda maior etnia indígena da Venezuela, já chegariam a 4 mil em território brasileiro, segundo a nota informativa para municípios lançada em agosto passado pela Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e pelo Ministério da Cidadania. 

Muitas vezes, a situação dos refugiados é tão vulnerável que acabam sendo vítimas de outras violações. Em abril do ano passado, a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS) chegou a resgatar 10 venezuelanos em situação análoga à escravidão em Itabuna, na região sul da Bahia. Em novembro, outros dois venezuelanos também foram encontrados em situação de trabalho irregular em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo.

Hospedagem Após chegar em Salvador na noite do dia 15 de dezembro, um domingo, o grupo de indígenas venezuelanos dormiu na rodoviária. Depois, pegaram um táxi com a intenção de chegar ao Centro. O taxista os deixou no Campo Grande. 

Quando encontraram o professor Paul Regnier, do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), pediram orientação para encontrar o local para morar. “Eu disse que era difícil, que aqui era uma área cara”, conta Paul. Enquanto tentava ajudá-los, teve um ímpeto. Decidiu hospedá-los em sua casa até que encontrassem a quitinete. 

Naquela noite, os nove dormiram na sala de sua casa. Na noite seguinte, a mesma coisa. No terceiro dia, conseguiu alugar o apartamento para eles na mesma localidade onde mora, no Garcia. Pagou R$ 800 por um mês de aluguel.  Paul Regnier, professor da Ufba, recebeu os venezuelanos na própria casa (Foto: Roberto Abreu/CORREIO) Se a atitude do professor parece rara, há uma explicação que vem da tradição familiar.“Minha família hospedou refugiados chilenos durante a ditadura de (Augusto) Pinochet. Eu tinha 7 anos e, por um ano, eles ficaram com a gente na França”, diz Paul, que é francês e, na época, morava na periferia de Paris."Eles se conheciam pelo posicionamento político. No meu caso, agora, foi por acaso”.No dia seguinte, outros cinco venezuelanos chegaram, já no apartamento alugado. Assim, a família conta com 14 membros de quatro diferentes gerações – da avó de Aníbal, dona Petra, com seus 80 anos, ao pequeno Francisco, de quatro meses, já nascido no Brasil. 

“Quem me conquistou logo foi a avó. Quando você via a avó, entendia que não tinha como a história não ser verdadeira”, diz Paul, referindo-se a Petra. 

A mais longeva dos Warao a chegar na Bahia não fala português, nem mesmo espanhol. Se ela tiver que apontar a maior dificuldade desde que chegou ao Brasil, é justamente o idioma. Diz que é mais difícil se adaptar ao português do que seguir por todas as cidades por onde passaram. “Fiquei um pouco triste porque queria que meus outros filhos estivessem aqui. As pessoas ajudam muito a gente aqui no Brasil. Na Venezuela, a gente tinha muita dificuldade para encontrar alimento. Aqui, parece outro mundo”, explica a matriarca, com ajuda da tradução do neto. Percurso Mas, a trajetória deles não começou em Salvador. Como muitos venezuelanos que vieram para o Brasil, a saga dos Warao começou antes de cruzar a fronteira do país. A tribo fica no chamado Parque Nacional Mariusa, onde o maior rio da Venezuela – o Orinoco – se encontra com o Oceano Atlântico. É daí, talvez, a relação com o próprio nome. Warao, na língua homônima, quer dizer “povo da água”. 

Viviam da pesca e da mariscagem. Suas casas eram construídas com as mesmas palafitas da região dos Alagados, aqui. Mas, nos últimos anos, a vida andava difícil. Sem comida, o pai de Aníbal, Elias, que também era o líder da tribo, tinha um trabalho perigoso: cruzava o mar para trazer suprimentos de Trinidad e Tobago, com quem a Venezuela faz fronteira marítima.  Crianças, idosos: no total, grupo de 14 pessoas ficou em quitinete (Foto: Roberto Abreu/CORREIO) Um dia, em janeiro, Elias estava com um amigo de Trinidad e Tobago e foi sequestrado. Passou quatro dias em cativeiro, até ser libertado. “A intenção desse comando ilegal era na verdade sequestrar os amigos de meu pai por dinheiro. São como milícias, gente ligada ao tráfico e ao crime organizado”, explica. 

Com a família ameaçada, Elias também decidiu vir para o Brasil. Aníbal já tinha vindo, semanas antes. Entraram por Pacaraima (RR), município que fica na fronteira do país. Seguiram para Boa Vista (RR), onde ficaram por seis meses.“Ficamos 56 dias na rua. Minha mulher estava grávida e foi uma luta muito grande, porque logo veio a época de chuva”, diz Aníbal. O filho mais novo de Aníbal, batizado de Joro, nasceu em Boa Vista. Depois disso, conseguiram encontrar um abrigo para venezuelanos, mantido por organizações não-governamentais. Durante todo o tempo, sobreviveram por meio de doações – de roupas, comidas e mesmo de dinheiro. 

“Mas nós queríamos ir para perto do mar. Por isso, em julho, decidimos ir para São Luís (MA)”, lembra. De Boa Vista (RR), foram a Manaus (AM) e Belém (PA), até chegar à capital maranhense. Viajavam de ônibus, sempre graças a doações. A única exceção foi o trajeto entre Manaus e Belém, feito de barco, por quatro dias. 

Em São Luís, ficaram quase três meses morando em uma quitinete alugada. Recebiam ajuda de igrejas evangélicas e da Igreja Católica. “A gente saía na rua para pedir ajuda, mas não conseguíamos emprego, nada”, diz Aníbal. Em novembro, decidiram tentar ir para Fortaleza (CE). Lá, esperavam encontrar uma conhecida que trabalhava na Fundação Nacional do Índio (Funai), mas essa reunião nunca aconteceu. Na época, a mulher estava fora do estado. 

Foi em Fortaleza que aconteceu um dos momentos mais tristes da viagem: o bebê Joro, filho de Aníbal e da esposa Rosaura, morreu aos quatro meses. “Ele começou com febre, sentindo dores. Duas horas depois, morreu. Sei que é uma coisa que pode acontecer, mas acho que foi causado pelas nossas condições de vida”, desabafa Aníbal. Rosaura, mulher de Aníbal, estava grávida quando cruzou a fronteira (Foto: Roberto Abreu/CORREIO) Após uma semana na capital cearense, decidiram dar a chance a um lugar de que tinham ouvido falar bastante durante a viagem: a Bahia. Na época, não conheciam Salvador. Chegaram na rodoviária de Fortaleza e pediram passagem para vir para o estado. A atendente respondeu que só tinha para a capital. “Falavam para a gente que a Bahia era um estado de amizade, que muita gente poderia nos ajudar. Em geral, o Brasil é um país muito acolhedor, que abraça os estrangeiros. Quando falamos que somos da Venezuela, acho que impressiona ainda mais, porque as pessoas querem ajudar, comprar um café, saber como está a situação”, conta.Mas, aqui, o tamanho da cidade assustou o grupo. Não imaginavam que Salvador seria tão grande – nem que os peixes fossem diferentes dos encontrados nos rios e mares da Venezuela. Depois de Salvador, os Warao seguiram para Natal (RN). Mais 1.093 quilômetros na conta dos mais de 6,2 mil já percorridos por sete estados brasileiros.

Povos Warao têm hábitos nômades  Os Warao são mesmo nômades. Costumam andar muito, movendo sempre de um lugar para outro. Quem diz isso é a professora de Relações Internacionais da Unifacs Rafaela Ludolf, coordenadora do Serviço ao Migrante da Unifacs. 

Através do centro, ela conseguiu doações para os 14 indígenas Warao – R$ 400, além de uma vaquinha na internet com a meta de arrecadar R$ 2 mil.“Eles já estavam com todos os documentos porque fizeram todo o processo em Roraima. A única coisa que eles não conseguiram foi o registro no CadÚnico, que concede o Bolsa Família, por essa característica nômade. Até se cadastraram, mas não receberam o cartão”, diz a professora. Ainda que o Bolsa Família seja um programa federal, ele é gerido pelas prefeituras. Por isso, é preciso ser morador da cidade. “Eles se adaptariam muito bem ao litoral nordestino porque são marisqueiros de profissão e moravam em casas de palafitas. Os grupos indígenas da Venezuela são muito ativos politicamente, inclusive o pai de Aníbal e ele próprio”, explica. 

De acordo com a professora, em muitos casos, os venezuelanos que são tratados como refugiados não têm esse status. Há outras situações de visto, como o visto humanitário e a solicitação de residência, que é considerada menos burocrática.

“O refúgio é pelo temor de perseguição por motivo de raça, religião, gênero ou violação grave dos direitos humanos. Tem muitos tipos de visto. A Venezuela está suspensa do Mercosul, mas o visto de residência ainda foi estendido”, explica. 

Quem quiser ajudar o projeto ou mesmo for um migrante em Salvador pode entrar em contato com o Centro na própria Unifacs, no campus Tancredo Neves ou pelo email [email protected]. O projeto retorna de férias em fevereiro para as matrículas do curso de português. Em março, começam as aulas, que são gratuitas.  Aníbal é uma espécie de líder informal do grupo, até por falar o português (Foto: Roberto Abreu/CORREIO) Por onde eles passaram no Brasil Pacaraima (RR) - Boa Vista (RR) - 214 quilômetros Boa Vista (RR) - Manaus (AM) - 750 quilômetros Manaus (AM) - Belém (PA) - 1.600 quilômetros Belém (PA) - São Luís (MA) - 580 quilômetros  São Luís (MA) - Fortaleza (CE) - 900 quilômetros Fortaleza (CE) - Salvador (BA) - 1.200 quilômetros Salvador (BA) - Natal (RN) - 1.093 quilômetrosTotal: 6,2 mil quilômetros