Mais veloz: a real curva de mortes em um ano de covid-19 na Bahia

Boletins diários ainda têm trazido óbitos até de abril; números subiram mais rápido do que divulgado

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  • Vitor Villar

Publicado em 14 de março de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Paula Fróes / CORREIO

Estamos em março de 2021, mas a Bahia ainda tem contabilizado mortes por covid-19 até de abril de 2020 – há 11 meses, portanto.

Por exemplo: no boletim divulgado pela Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) na última quinta-feira (11), foram registradas naquelas 24 horas 115 mortes pela doença. Porém, algumas dessas mortes ocorreram em maio, junho e julho de 2020, além de janeiro e fevereiro deste ano.

Desde o início de março, os boletins diários atualizaram sete mortes de julho de 2020, nove mortes de junho, 17 mortes de maio e uma de abril. Não se trata de algo recente. Desde agosto, quando passou a detalhar os boletins, que a Sesab tem trazido também mortes de meses anteriores.

A diretora da Vigilância Epidemiológica do Estado (Divep), Márcia São Pedro, explica: “Mesmo com um atraso de 11 meses, aquele óbito aconteceu e precisa ser contabilizado”.“Porque, quando passar a pandemia, vamos fazer as análises que agora não podemos pela dinâmica do combate. Vamos estudar tudo o que ocorreu. E eu não posso perder nenhum dado para os estudos”, diz Márcia.Por isso, é totalmente errado interpretar como se as mortes atualizadas nos boletins diários tivessem ocorrido na data da sua divulgação. A Sesab usa o termo 'registradas'. Na quinta-feira, 22 daquelas 115 mortes ocorreram de fato nas últimas 24 horas.

Por outro lado, esse número também não pode ser considerado um retrato definitivo daquele dia: essas 22 mortes serão certamente acrescidas nas próximas semanas e até mesmo ao longo dos próximos meses.

Por exemplo: até o dia 1º de março, uma segunda-feira, sabíamos que nove mortes haviam ocorrido no final de semana recém-finalizado, dos dias 27 e 28 de fevereiro.

Os números foram atualizados reiteradamente desde então. Hoje, 15 dias depois, sabemos que pelo menos 120 pessoas morreram naquele final de semana na Bahia.

Foram 51 pessoas no domingo e 69 no sábado. Essa marca torna o dia 27 de fevereiro o dia com mais mortes ocorridas na Bahia desde 29 de julho de 2020 e a data com mais mortes no ano de 2021.

“O que aparece no seu levantamento é o 'delay' entre a ocorrência da morte e a notificação. Não dá para dizer que os óbitos estejam aumentando no número que é divulgado no boletim”, explica Márcio Natividade, epidemiologista e professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba.“Porque nem todo registro que está no boletim diz respeito à data de divulgação. Pode ser que depois aquele aumento se comprove ou seja até maior”, completa o especialista.Esse espaço entre a ocorrência do óbito e o seu registro é visto especialmente nos finais de semana. “É quando a gente percebe a entrada de menos óbitos no sistema”, diz Márcia São Pedro. “A documentação que precisa ser enviada com celeridade para a vigilância muitas vezes não é lançada nos finais de semana”, completa.

Esse 'delay' se explica pela demora das secretarias de saúde dos municípios em colocar as declarações de óbito no sistema determinado para isso (veja a explicação mais abaixo).“Hoje, eles estão mandando com mais frequência porque é muita cobrança. A gente fica em cima deles, falando que tem que enviar, mesmo nos finais de semana”, completa Márcia.

Efeitos

Então, como esse atraso afeta a nossa vida? A questão é que a constante revisão dos óbitos nos meses passados provoca a revisão de toda a curva de mortes na Bahia.

Como assim? No dia 25 de agosto, foi divulgado que a Bahia havia ultrapassado a marca de 5 mil mortes. Eram os dados disponíveis à época. Sete meses depois, sabemos hoje que a marca de 5 mil óbitos foi atingida no dia 1º de agosto. Quase um mês antes.

2021 já começou com marcas aceleradas. Hoje, sabemos que em 2 de janeiro, um sábado, ocorreram pelo menos 56 mortes por covid-19. Mesmo uma semana depois, no dia 9 de janeiro, apenas 20 haviam sido registradas nos boletins.

Com aquelas 56 mortes – números conhecidos até o momento – 2 de janeiro está entre as 10 datas com mais mortes em 2021. É uma marca semelhante às registradas em agosto, no auge da pandemia.

Como é possível ver no gráfico abaixo, existe uma dilatação entre a curva de mortes de acordo com a data de ocorrência (vermelha) e a curva de mortes de acordo com a divulgação nos boletins (azul).

Essa dilatação volta a se acentuar na virada do ano. Enquanto o gráfico vermelho cresce em linha reta a partir de janeiro, a linha azul só se inclina a partir de fevereiro. De fato, a Bahia ultrapassou as 10 mil mortes em 7 de janeiro, mas essa marca só apareceu nos boletins no dia 29 daquele mês.

Atrapalha?

A pergunta é imediata: será que esse atraso para que se conheça o real número de óbitos por dia atrasa o combate à pandemia?

Márcia São Pedro explica que o número de óbitos é um dado importante, mas que a Vigilância não pode trabalhar apenas com ele: “O que nós queremos é evitar o óbito, então trabalhamos com os dados que auxiliam nesse sentido”.“É preciso trabalhar com todos os fatores juntos. Mas não é só o aumento de óbitos que determina uma atitude. Se eu tenho óbitos elevados, significa que estou estou precisando de mais assistência hospitalar”, explica.Números de casos ativos, de hospitalizações e de pacientes esperando regulação, além da taxa de testes positivos no Laboratório Central (Lacen) e de ocupaçao de leitos são indícios que podem ser medidos de maneira mais ágil.

“Não acho que atrapalhe porque você tem que tomar as providências pelo aumento de casos que está tendo, e não pelo número de óbitos”, avalia Ana Paula Mariano, professora de medicina da UESC.

Ela coordena um laboratório da universidade que desde junho está credenciado pelo Lacen e tem auxiliado na testagem na região de Ilhéus e Itabuna.“Seguir o aumento do número de contaminados torna mais ágil traçar políticas públicas. E a capacidade de testagem no estado tem aumentado, no início era realmente mais difícil”, completa Ana Paula.Márcio Natividade concorda: “Investigar hospitalizações e ocupação de leitos junto aos óbitos faz mais sentido. Temos que lembrar que o óbito ocorre por conta da gravidade dos casos. Então o ponto focal para a tomada de medidas precisa ser a estrutura hospitalar e o crescimento de casos”

Fase mais grave

É possível rever a gravidade da fase mais aguda da pandemia. No dia 1º de agosto, pensávamos que julho nos havia levado 1.560 baianos. Hoje, sabemos que foram 2.099 mortos naquele mês. 539 mortes de julho só seriam registradas depois - e seguem sendo contabilizadas até hoje.

18 de julho foi – até o momento – o dia em que, de fato, ocorreram mais mortes por covid-19 na Bahia desde o início da pandemia. Naquela data, 82 pessoas foram a óbito.

Todos os 10 dias com mais mortes na Bahia são de julho de 2020, e quase todos na segunda quinzena. Junho, que também ainda tem mortes sendo atualizadas, foi o segundo pior mês com 1.728 óbitos.

Conhecer esses dados atualizados é fundamental a fim de evitar erros cometidos na fase mais aguda da pandemia.  “O número de óbitos mostra a necessidade de aumentar a assistência e de verificar o que aconteceu”, explica Ana Paula.“Nas cidades pequenas, muitas pessoas ficaram escondendo sintomas por receio dos vizinhos, não queriam que ninguém soubesse, e deram entrada nos hospitais já em estado crítico”, completa a médica.Chama a atenção que alguns dias de 2021 já estão 'largando' com números elevados. Os datas de 1º, 3 e 4 de março, por exemplo, já têm pelo menos 60 mortes, cada, e aparecem entre os cinco piores dias de 2021. Pelo menos 3,3 mil baianos já morreram neste ano.

A epidemiologista Maria Yury Ichihara, líder do grupo de informações da Rede CoVida, da Fiocruz Bahia, concorda que isso prejudica análises mais profundas.

“Esse registro tardio de óbitos traz dificuldades, sim, à avaliação da pandemia, limitando análises da gravidade dos casos, do excesso de mortalidade em relação à outras causas de morte e em relação à letalidade da covid-19”, explica Ichihara.

Por que esse atraso?

Por que os óbitos têm demorado de aparecer nos boletins? Primeiramente, é algo esperado. Como explica Márcia São Pedro, toda morte passa por investigação da Vigilância Epidemiológica.

A intenção é evitar que mortes que não ocorreram de fato por covid-19 apareçam nos boletins. Se a covid-19 é apontada como causa básica e o teste PCR deu positivo, essa investigação é mais rápida e o registro pode aparecer no boletim no mesmo dia.

Porém, se o teste deu negativo ou se a covid-19 aparece como causa associada à morte, a análise leva mais tempo para verificar a influência do vírus. Tudo isso segue um rigoroso protocolo em etapas, que é divulgado pela Sesab no esquema abaixo.

“Com a covid-19, pode existir dois casos. O paciente realmente estava com o vírus, teve todo o quadro da doença e veio a óbito. Ou ele morre de cardiopatia, mas que foi agravada pela covid-19. Então a investigação serve para determinar isso”, explica Márcio Natividade.O gargalo, que tem feito demorar meses, é a demora dos municípios em colocarem a Declaração de Óbito (DO) – documento emitido por um médico com todo o histórico clínico da morte – no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

Só depois que a DO é colocada no sistema ela chega à Vigilência e é possível iniciar a investigação.“Enquanto não coloca no sistema, a gente não tem acesso àquela informação. Para ter uma ideia, ontem (quarta, 10) um município colocou um 'malote' (pacote de dados) no SIM. E veio um óbito de abril”, diz Márcia São Pedro.“Era um óbito com causa básica covid-19, com resultado positivo do Lacen, com histórico clínico bem característico. Ou seja, era um óbito que já podia estar no boletim há muito tempo”, completa.

Numa situação normal, o SIM fica aberto aos municípios por um ano e dois meses. Quando há um agravo de saúde pública, como uma pandemia de arboviroses – dengue ou zika, por exemplo – o prazo pedido pela Vigilância é de 120 dias.

No caso da covid-19, a Sesab determinou, através de portaria em junho, que a comunicação seja feita em até 24 horas. Segundo Márcia São Pedro, muitos municípios não conseguiram se adequar para cumprirem o prazo.

“A gente precisa que esse dado seja enviado pelo município de forma imediata. Estamos no meio de uma pandemia, tudo tem que ser notificado de maneira imediata. Óbitos tardios podem acontecer, mas por conta da investigação”, completa.

O CORREIO procurou o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) para averiguar se o mesmo ocorria com os demais estados brasileiros. O órgão não disponibilizou fonte para entrevista, mas um funcionário disse, sem querer se identificar, que todos os estados têm passado pelo mesmo.

Ou seja, os números divulgados diariamente nos boletins das secretarias também são um acúmulo de meses passados. Assim, os dados divulgados nacionalmente – 2.233 mortes no último dia 11 – se referem a mortes registradas, e não ocorridas, nas últimas 24 horas.

Normal?

Segundo especialistas, esse 'delay' também ocorre em outras epidemias. “Em épocas normais já ocorre porque todo óbito passa por investigação epidemiológica. Imagine, então, no fluxo de trabalho de uma pandemia?”, analisa Márcio Natividade.“Imagine numa cidade pequena do interior, que só tem um profissional em toda a vigilância? Então há uma demanda grande e poucos recursos humanos”, analisa Márcio Natividade.Para os pacientes que vão a óbito em hospitais, o processo de emissão de declaração de óbito por meio do médico é mais rápido, além do histórico disponível no Sivep Gripe e do teste no Lacen.

Por isso, Ana Paula Mariano cita outro problema recorrente na Bahia: as mortes em casa. Nesses casos, é preciso que a secretaria faça, posteriormente, todo o passo a passo, o que leva tempo.“Na minha vivência no laboratório, tenho recebido muitas ligações de municípios dizendo que ocorreu um óbito em casa. E aí ainda vão fazer a coleta, vão enviar pra gente fazer o teste, vão fazer a análise clínica para emitir a DO… Então há um atraso muito grande”, argumenta.