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Roberto Midlej
Publicado em 31 de janeiro de 2022 às 06:36
- Atualizado há um ano
Este jornalista já contou, há poucos meses, aqui mesmo, neste espaço, esta pequena anedota a seguir. Mas vale repetir, para ter uma ideia de quem foi Marcelo Sá, que morreu ontem e era sócio do grupo Saladearte. Era o ano 2000, eu, minha namorada (hoje esposa) e minha mãe íamos pela primeira vez ao Circuito Saladearte, ainda na recém-inaugurada sala do Bahiano de Tênis.
Fomos assistir a Dançando no Escuro, drama pesadíssimo de Lars Von Trier, com a cantora Björk no papel principal. Quando nos aproximávamos da entrada da sala, Marcelo nos recebeu e disse: "Trouxeram o lencinho? Vão precisar". Nós três nos olhamos e dissemos, nas entrelinhas, um para o outro: "E aí, vamos encarar?". Sim, encaramos. E Marcelo estava certíssimo.
Assim era Marcelo: bem-humorado, piadista, espirituoso... e, sobretudo, um anfitrião de primeira. Deixava os clientes sempre à vontade, tanto que, não à toa, os frequentadores daquele espaço dizem que formam, juntos, a "família Saladearte".
Permita-me, leitor, ainda, uma outra observação em primeira pessoa: como cinéfilo, este repórter sentia falta, no início deste milênio, de uma programação "alternativa" nos cinemas de Salvador, cidade que havia recebido dois anos antes, no Shopping Iguatemi, o formato multiplex de uma cadeia internacional. A chegada daquelas salas modernas e imponentes prenunciava, para muitos, o fim dos circuitos independentes e regionais de cinema.
Mas Marcelo foi bravo: encarou a concorrência desleal das grandes redes e foi em frente, na busca de seu sonho. Vale lembrar ainda que Salvador vivia o auge da axé music e praticamente o monopólio da cultura carnavalesca. Mas nada disso esmoreceu a veia empreendedora de Marcelo. E o circuito revelou-se um sucesso, mobilizando a comunidade cinéfila da cidade, que logo transformou a Saladearte num ponto de encontro.
Portanto, não é nem um pouco de exagero dizer que Marcelo foi um dos responsáveis, junto com seus sócios, por uma transformação na cultura de Salvador. Com a chegada da Saladearte, abriu-se um novo mercado e o circuito cultural levou a chacoalhada que tanto precisava.
Mais tarde, chegou o festival Panorama Coisa de Cinema, criado por Claúdio Marques, que ainda fundaria o espaço Glauber Rocha, também "alternativo". Depois, a própria Saladearte iria trazer para a cidade o Varilux, festival de cinema francês que acontece anualmente. Salvador ganhou até duas locadoras especializadas em filmes cult e clássicos: uma no Rio Vermeho, que era a Casa de Cinema (fundada por este jornalista que assina este texto) e outra no Jardim Brasil, a Vintage.
O Saladearte, é verdade, passou por algumas crises em seus 22 anos. Uma delas foi em 2006, quando a sala original, do Bahiano, foi fechada e deu lugar a uma delicatessen. Mas aquele foi o pretexto para que a família Saladearte promovesse uma manifestação e se reunisse para dar um imenso "abraço" em volta do espaço, pedindo a permanência da sala. Não foi o suficiente para mantê-la, mas ficou a importante lição da luta pela arte.
Esta luta foi reacendida recentemente, quando os frequentadores sa Saladearte aderiram a uma vaquinha virtual para arrecadar dinheiro para a reinauguração da sala do MAM, que vivia uma crise em razão da pandemia. O grupo estava endividado e, se não fosse a participação dos cinéfilos, provavelmente não teria sido reaberto. Marcelo dedicou-se obsessivamente à sobrevivência da Saladearte.
A campanha Juntos Pela Saladearte reuniu, num vídeo, depoimentos de artistas como Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e o cineasta Edgard Navarro, que convocavam o público para colaborar. O resultado foi um sucesso: a meta de R$ 300 mil foi superada com folga e chegou a R$ 360 mil. E era clara a responsabilidade de Marcelo ali, afinal, era ele, com sua simpatia, o grande criador da Família Saladearte, que participou ativamente da campanha.
É lamentável que ele tenha partido neste momento, em que a Saladearte está se reerguendo, mas é bom saber também que Marcelo pôde ver, pouco antes de morrer, que o seu trabalho não foi em vão e foi capaz de mobilizar tanta gente em torno de uma causa pela cultura, que anda tão desprezada pelo governo federal. Os cinéfilos baianos têm agora o compromisso de manter a Saladearte viva, por justiça à memória de Marcelo Sá, esse guerreiro da cultura local.