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Paulo Sales
Publicado em 12 de julho de 2021 às 10:11
- Atualizado há um ano
Na semana passada, passei uns dias relaxando numa praia fora da cidade. Antes, porém, encontrei pelo caminho uma carreata de apoiadores do atual governo. Bandeiras verdes e amarelas nos carros e motos, a maioria apenas com o motorista. Olhei de relance aqueles rostos: vazios, raivosos, sisudos, quase todos homens. Ocupavam boa parte das faixas da avenida, atrapalhando o tráfego. Até que, enfim, consegui me desvencilhar e pude seguir o meu destino.
Fiquei me perguntando qual o motivo de estarem ali. Seria para celebrar as mais de 530 mil vítimas da covid-19, por falta de vacinas, planejamento e vontade política? O aniquilamento do mais rico ecossistema do planeta? Ou quem sabe a pauta econômica ultraliberal, que vem provocando um aumento exponencial da miséria? Mas podia ser também a avalanche de denúncias de rachadinhas e cobrança de propinas na negociação de imunizantes.
Era como uma manifestação coletiva de masoquismo. Estavam ali fazendo apologia da dor e da destruição, lambendo alegremente as feridas de um Brasil que desmorona. Até aí, se eles sentem prazer em sofrer, o problema é deles. Mas nem todos se deliciam com o sofrimento. A maioria, a julgar pelas pesquisas recentes, deplora o fato de que o próprio país, como um organismo vivo, está sendo corroído, dilacerado, depauperado. Não deixa, portanto, de ser uma falta de respeito para com o martírio alheio.
A enfermidade que atende pelo nome de bolsonarismo tem suas origens em um momento crucial: o processo de Abertura nos estertores do regime militar. A nação cindida e incapaz de entender a própria história vem de lá. Naquele momento, a anistia ampla, geral e irrestrita acabou por acobertar crimes cometidos pelo Estado e não julgou devidamente os integrantes da máquina de matar e torturar que operou durante a ditadura.
Sem julgamentos e punições, aquela página infeliz da nossa história ficou capenga, sem um ponto final. Foi isso que provocou, entre outros episódios graves, a ruptura institucional de 2016, com um impeachment forjado. Foi isso que permitiu a um deputado federal discursar louvando um torturador em plenário, para o Brasil inteiro ver, e não sair de lá algemado. Foi isso que fez com que esse mesmo deputado fosse eleito presidente, a despeito de sua trajetória pregressa aviltante.
No conto A Mancha, Verissimo pôs na boca de um personagem uma análise arguta sobre o que nos trouxe até o Brasil de Bolsonaro: “Nada mudou, nada avançou, nada foi purgado. Houve uma guerra que a vizinhança nem notou. Mal ouviram os gritos. No fim da guerra nenhum território tinha sido conquistado ou cedido e vencidos e vencedores pegaram seus mortos e seus ressentimentos e voltaram para os seus respectivos países, que é o mesmo país! Mais estranho do que as guerras que não resolvem nada é essa nossa paz promíscua, vencedores e vencidos convivendo sem nunca saber bem quem é o quê.”
Talvez tenha faltado a Verissimo dizer que a tal guerra não se deu entre forças equivalentes. Era o poder do Estado reprimindo e dizimando núcleos esparsos de resistência aos abusos e arbitrariedades que ele mesmo cometia. Houve excessos pelo lado dos combatentes? Sim, houve. Mas numa proporção insignificante, diante das centenas de mortos, desaparecidos e torturados pelo regime. Hoje, um contingente enorme de brasileiros também chora seus mortos. Mas, para os masoquistas que desfilam de verde e amarelo, o sofrimento é algo a ser celebrado.