Médico descontextualiza manual da Pfizer para sugerir alterações genéticas pela vacina

A farmacêutica explicou ao Comprova que a recomendação não é feita para evitar mutações genéticas, mas porque os estudos dessa vacina - como de qualquer outra - não incluem gestantes. Especialistas descartam totalmente que uma vacina para covid-19 seja capaz de causar alterações genéticas nos seres humanos

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Publicado em 12 de janeiro de 2021 às 19:13

- Atualizado há um ano

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Conteúdo verificado: Postagem de médico fala sobre orientação de sexo protegido em manual de vacina e engana ao sugerir que isso teria relação com supostas alterações genéticas causadas pelo imunizante. Um médico fez uma postagem enganosa ao sugerir, em seu perfil no Twitter, que a vacina da Pfizer/BioNTech provoca “alterações genéticas” com base em uma ressalva do manual de testes do imunizante voltado aos voluntários. O documento elaborado pela farmacêutica cita um período de 28 dias para que voluntários homens não doem esperma e não façam sexo sem preservativo por um possível “risco de segurança reprodutiva”. Voluntárias mulheres com potencial para engravidar devem manter método contraceptivo. O material está em inglês.

Ao Comprova, a farmacêutica explicou que a recomendação não é feita para evitar mutações genéticas, mas porque os estudos dessa vacina – como de qualquer outra – não incluem gestantes. O objetivo, diz a Pfizer, é poupar o feto de qualquer possível efeito que a vacina possa causar – visto que é fase de testes. Apesar disso, os dados disponíveis da pesquisa não indicam preocupações de segurança ou risco à gravidez, segundo a empresa.

Especialistas também negaram a questão. Para médicos ouvidos pelo Comprova, a ressalva feita pelo manual tem o objetivo de evitar a exposição de gestantes e fetos a possíveis efeitos da vacina em teste e descartaram totalmente que uma vacina para covid-19 seja capaz de causar alterações genéticas nos seres humanos.

Como verificamos?

Primeiro, procuramos a Pfizer para esclarecer sobre o que se refere o manual e o que significa o risco indicado na página 132. A farmacêutica respondeu em troca de e-mails e, por fim, enviou um documento consolidando as respostas.

Também procuramos o doutor em biologia molecular e especialista em desenvolvimento de vacinas de DNA pela Fiocruz, Rafael Dhalia, e o virologista da Universidade Federal de Minas Gerais e do Centro de Tecnologia em Vacinas da UFMG, Flávio Fonseca, que responderam por mensagens e áudios no WhatsApp sobre as afirmações feitas pelo autor da publicação. O Comprova tentou contato com o autor da postagem, o médico Alessandro Loiola, que já teve outros conteúdos checados pela equipe, mas não obteve sucesso até o fechamento da verificação.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 12 de janeiro de 2020.

Verificação Manual da Pfizer e o “risco de segurança reprodutiva”

A página do documento mencionado por Loiola apresenta a expressão “risco de segurança reprodutiva”, mas não se refere a risco de alteração genética – suposto efeito do imunizante de alterar o material genético (DNA) das pessoas, possibilidade rechaçada pela farmacêutica e por especialistas. Os critérios do estudo exigem que o voluntário se abstenha de relações sexuais por um período de 28 dias, assim como da doação de esperma. Como alternativa, no caso de uma relação sexual, o uso do preservativo é indispensável. No caso de gravidez, a gestação terá acompanhamento médico.

Ao Comprova, a Pfizer garantiu, em troca de e-mails, que “não há qualquer registro de infertilidade ou de problemas relacionados à reprodução entre os voluntários” e informou que as recomendações são feitas não por apresentar risco de fertilidade, mas simplesmente porque o estudo não tem participação de mulheres grávidas.

“Em qualquer estudo clínico que não prevê a participação de população grávida, há recomendações para prevenção e sexo seguro. Estudos de vacinas e medicamentos, geralmente, não incluem grávidas, o que foi o caso da vacina da Pfizer e Biontech contra a covid-19”, disse a fabricante.

Por comunicado, a Pfizer explicou ainda que, “embora os dados disponíveis não indiquem quaisquer preocupações de segurança ou danos à gravidez”, não há, atualmente, “evidências suficientes para recomendar o uso de vacinas contra a COVID-19 durante a gestação”.

Por isso, “o uso de métodos eficazes de contracepção deve ser aplicado para homens e mulheres em idade reprodutiva”. “O objetivo é preservar o feto em todas as fases, desde a sua formação, de qualquer eventual efeito que um medicamento ou uma vacina em estudo possam causar”, afirma a fabricante, que não fala em momento algum de alterações genéticas.

“Caso ocorra uma gravidez durante o estudo (seja da participante ou da parceria de um participante) a gestação será acompanhada até o nascimento do bebê”, completa a Pfizer.

Risco em caso de gravidez

A postagem verificada pelo Comprova, que cita a recomendação para não praticar sexo desprotegido nos 28 dias após a segunda dose da vacina da Pfizer-BioNTech, sugere uma relação dessa orientação a possíveis alterações genéticas causadas pelo imunizante. No entanto, segundo especialistas ouvidos pelo Comprova, a vacina não provoca alterações genéticas e a medida é uma cautela usual em vacinas e medicamentos em fase de desenvolvimento. Além disso, não é possível afirmar que haveria risco de danos ao futuro feto em uma possível gestação.

O doutor em biologia molecular e especialista em desenvolvimento de vacinas de DNA pela Fiocruz, Rafael Dhalia, afirma que a orientação de uso de métodos contraceptivos durante um determinado período de avaliação é uma medida recorrente e faz parte das normas de boas práticas clínicas no desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas.

Segundo ele, a recomendação não é exclusividade da vacina da Pfizer e ocorre como precaução. Vacinas mais conhecidas, que já têm mais estudos concluídos, podem possuir contraindicações para gestantes, enquanto outras são até mesmo recomendadas para esse público. No caso de vacinas novas, de acordo com ele, seria “melhor pecar pelo excesso”.

“Por cautela, não se recomenda engravidar nesse período [de 28 dias após a segunda dose], considerado mais crítico, embora não seja possível afirmar que causará algum dano ao futuro feto”, aponta o especialista, frisando que a vacina não provoca alterações genéticas.

O prazo em que não é recomendado aos voluntários do estudo engravidar varia conforme o tipo de vacina em desenvolvimento, segundo o pesquisador. No caso de vacinas de vírus atenuado, que possuem o vírus vivo, mas enfraquecido, o período recomendado costuma ser de 21 dias, que é o tempo de replicação do agente no organismo – vale frisar que não há imunizantes deste tipo contra covid-19 nas fases mais avançadas de estudos clínicos. No caso de vírus inativado (que por estar “morto”, não se replica no corpo), o intervalo em que costuma ser recomendado não engravidar é de 14 dias.

Vacina com vírus inativado é a técnica usada por exemplo pela vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo. O protocolo de pesquisa divulgado em outubro no repositório do instituto também afirma que o médico responsável pelo estudo poderia iniciar ou manter método contraceptivo para mulheres com potencial de engravidar nos 28 dias posteriores à última vacinação. A medida não seria obrigatória para mulheres que se declararem sem risco de engravidar ou que não pretendam ter prática sexual com fins reprodutivos nas quatro semanas seguintes à aplicação da dose.

Segundo checagem do Estadão Verifica, que investigou o mesmo tuíte, protocolos das vacinas da AstraZeneca e Universidade de Oxford, Moderna e Janssen também incluem nos critério para adesão de voluntários o uso de métodos contraceptivos ou a abstinência para mulheres com potencial de gravidez.

No caso das vacinas de RNA, como a da Pfizer-BioNTech, o período de 28 dias orientado no manual da farmacêutica equivale ao tempo em que há maior expressão das moléculas de RNA no organismo, para produzir a proteína spike, que vai estimular o sistema imune a desenvolver anticorpos contra o novo coronavírus.

Alterações genéticas

A postagem verificada também sugere que a vacina da Pfizer-BioNTech provocaria supostas alterações genéticas. O assunto já foi alvo de outras verificações do Comprova, que mostraram que as vacinas não causam câncer, danos genéticos ou homossexualidade e que as vacinas não modificam o DNA. Nessas verificações, especialistas apontaram que o material genético fica protegido no núcleo da célula, com enzimas que protegem o DNA de possíveis mutações, o que impediria modificações a partir das vacinas atuais.

O especialista ouvido nesta checagem pelo Comprova, Rafael Dhalia, também desmente a afirmação e diz que ela “mostra um desconhecimento básico de biologia molecular”.

Segundo ele, as vacinas são de RNA, que são moléculas compostas de cadeias ou fitas simples, enquanto o genoma humano é formado pelo DNA, de cadeias ou fitas duplas. Por conta disso, uma molécula de RNA não poderia se integrar em uma de DNA para modificá-la, como sugerem teorias antivacinas.

Para obter resultados de testes PCR, por exemplo, de acordo com o pesquisador, é preciso usar uma enzima chamada de “transcriptase reversa” para transformar o RNA em DNA e obter o resultado do exame por meio de uma reação. No entanto, essa enzima não existe no corpo humano.

Ainda que existisse, para uma suposta integração ao DNA ocorrer seria preciso que o paciente fosse infectado, por exemplo, por um retrovírus, que possui a enzima transcriptase reversa, e sofresse em seguida um fenômeno pouco frequente, chamado de “recombinação homóloga sítio-dirigida” – uma chance raríssima de acontecer, com risco praticamente inexistente a partir de uma vacina com base em RNA, segundo o especialista da Fiocruz.

Ainda sobre o risco de segurança reprodutiva, o virologista da UFMG, Flávio Fonseca, aponta que o processo de testes da vacina não levanta dúvidas quanto ao risco de segurança reprodutiva. Ele relembra que o vírus da covid-19 não tem transmissão sexual, e que para que uma modificação genética aconteça e seja transmissível, é necessário que a alteração ocorra nas células germinativas da pessoa, e não em uma célula qualquer – o que não acontece no caso de uma vacina (a menos que seja específica para esse tipo de célula).

O que é o manual

O manual de testes da vacina se resume no caderno de diretrizes do estudo. O seu uso é importante, uma vez que reúne informações e dados de toda a pesquisa que incidem no processo da imunização de participantes do estudo. Além disso, o manual de testes reúne resultados atualizados sobre efeitos observados em voluntários.

A Biblioteca Virtual da Saúde, vinculada ao Ministério da Saúde, disponibiliza um Manual de Normas e Procedimentos para Vacinação. Mesmo que diferente de um manual de testes, o documento segue os mesmos parâmetros que se estendem à preservação de vacina em ambientes refrigerados, fatores relacionados à pessoas vacinadas e organização e processo de vacinação em áreas médicas.

Os manuais medicinais de imunização cumprem o papel de divulgação de informações sobre a vacina, com a missão de contribuição para saúde e para o conhecimento geral da população quanto a processos, dados, testes e finalização.

Quem é o autor

O médico Alessandro Loiola é clínico-geral em São José dos Campos (SP), em um consultório particular. Loiola apareceu em outra verificação recente do Comprova, que apontou que ele também é registrado como profissional no Conselho Federal de Medicina em Minas Gerais, nas áreas de cirurgia geral e proctologia. O médico tem dezenas de milhares de seguidores no Twitter e no Instagram, onde já fez diversas postagens relacionadas à pandemia de covid-19, falando em “riscos da vacina” e contra o uso de máscaras.

O médico não tem um currículo cadastrado na plataforma Lattes. Em novembro de 2019, ele foi nomeado pelo então secretário de cultura, Roberto Alvim, como Coordenador-Geral de Empreendedorismo e Inovação, do Departamento de Empreendedorismo Cultural, da Secretaria da Economia Criativa. Ele foi exonerado menos de dois meses depois, em janeiro de 2020, após a saída de Alvim da chefia da pasta.

Loiola não atendeu a nosso pedido de esclarecimentos.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova investiga conteúdos duvidosos relacionados às políticas públicas do governo federal e à pandemia do novo coronavírus. Conteúdos falsos sobre vacinação prejudicam o trabalho dos pesquisadores e diminuem a confiança das pessoas na ciência e em medidas de benefício geral. A postagem, retuitada mais de 2,4 mil vezes, cria suspeitas sobre uma das vacinas que já estão sendo aplicadas globalmente – como fez, aliás, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O Comprova tem desmentido diversas correntes que abordam vacinação, como a que tira de contexto dados sobre sintomas da vacina da Pfizer, a que um imunizante australiano infectou pessoas com HIV e que a China não usará suas próprias vacinas, como a CoronaVac, uma das candidatas aqui no Brasil.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 28 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas da NSC, UOL e Niara, e validada, através do processo de crosscheck, por cinco veículos: Rádio Noroeste, CORREIO, O Povo, Estadão e Marco Zero.