Medo da morte já faz idosos e profissionais de saúde da Bahia buscarem testamentos

Buscas por informações sobre o procedimento tiveram alta nos cartórios, escritórios de advocacia e até no Google

  • Foto do(a) author(a) Hilza Cordeiro
  • Hilza Cordeiro

Publicado em 26 de maio de 2020 às 05:06

- Atualizado há um ano

. Crédito: (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)

O futuro da enfermeira Aisha Correia é incerto e ela está preocupada. Trabalhando na linha de frente contra o novo coronavírus, a profissional teme os riscos de morte e já pensou em procurar um cartório para fazer seu testamento. Para não assustar a família com o assunto, ela está protegida com um nome fictício nesta matéria. De acordo com o Colégio Notarial do Brasil (CNB-BA), a busca por informações sobre os serviços de transferência de bens aumentaram na Bahia entre pessoas com comorbidades do grupo de risco da covid-19, idosos e profissionais da saúde.

Ferramenta que acompanha a evolução do número de buscas por uma determinada palavra-chave, o Google Trends apontou em 12 de abril que houve pico de buscas aqui no estado para o termo ‘testamento’. Desde o início da pandemia, mais de 235 atos — entre testamentos, inventários, partilhas e escrituras de doação — já foram feitos nos 507 cartórios baianos.

Conforme o CNB-BA, nos meses de janeiro, fevereiro e março deste ano, antes da doença começar a afetar o país, houve uma média de 177,3 atos realizados, quase a mesma da pandemia (177,5). Portanto, os números de documentos feitos na pandemia não são exatamente maiores do que em tempos normais.

Como os cartórios ficaram fechados e estão funcionando de forma reduzida em regime de plantão, os estabelecimentos têm atendido menos pessoas por causa do expediente menor. Mas o que a instituição explica é que mais gente tem entrado em contato buscando informações para conhecer os procedimentos.“Num momento de adoecimento, a gente não vai conseguir definir nem pensar sobre isso. Essas conversas são importantes, a gente sabe que um dia a gente vai morrer, mas a gente nunca espera e deixa a conversa sempre pra depois", comenta Aisha.Para o CNB-BA, essa busca pelo serviço no país tende a aumentar nas próximas semanas, já que os estados brasileiros iniciaram a regulamentação destes procedimentos — exceto o testamento — por meio de videoconferência. Na Bahia, atos eletrônicos já são permitidos.

O inventário, por exemplo, é o documento que faz o levantamento do patrimônio deixado pela pessoa falecida e é obrigatório para que a partilha de bens seja feita entre herdeiros. Por aqui, este é o serviço mais procurado e 98 lavraturas deste tipo já foram feitas. Os testamentos, que asseguram o cumprimento da vontade do autor após a sua morte, aparecem em terceiro, com 42 lavraturas.

Busca por informações

Especialista em Direito da Família, a advogada Gabriela Pedreira Federico conta que no seu escritório foi possível notar uma busca por informações vinda de clientes que, normalmente, não costumariam se preocupar com o assunto de forma antecipada. Muitos deles queriam tirar dúvidas sobre o próprio processo de inventário e os custos disto. A principal preocupação relatada tem sido os filhos menores e ainda dependentes.

Condutor do projeto Cuidando da Enfermagem, que presta diferentes tipos de apoio à quem está na linha de frente, o enfermeiro intensivista Getúlio Morbeck detalha a natureza do medo destes profissionais. Ele conta que, inicialmente, pensava-se que os danos causados pela doença ficariam restritos aos idosos, mas a perda de colegas foi aumentando o temor entre o pessoal.“O vírus está aí para todos, ele é devastador. As equipes de enfermagem vão para o trabalho receosas de voltar para casa, de ter contraído e propagar o vírus para os demais membros da família. É aí que vem a consequência da busca pelo testamento. Não somos super-heróis, estamos vulneráveis. Eu sou herói da minha família, do meu filho, minha mãe, minha esposa”, desabafa ele, que chama atenção ainda para a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), que garantem mais segurança aos trabalhadores.De última hora

Presidente da Comissão de Direito da Família da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia, a advogada Lara Soares explica que, historicamente, a sociedade ocidental evita tocar no assunto da morte. É comum pensar que planejar estas questões seria como atrair o fim da própria vida. “É como se o sujeito, futuro morto, estivesse emanando energia como se ela fosse retornar”, explica. A advogada acrescenta que, por causa dessa mentalidade, só 5% das empresas brasileiras — que são 90% familiares — chegam à terceira geração.

Há duas décadas atuando na área de Direito da Família, Elian Pires conta que os baianos têm o hábito de deixar o planejamento de sucessão para a última hora ou de nem mesmo fazê-lo. No entanto, num cenário pandêmico, o assunto da morte é impetuoso e força as pessoas a entenderem as suas consequências, aponta a também advogada Lizandra Colossi Oliveira.

Pós-graduada em neurociência e comportamento, Colossi afirma que o medo tem um lado benéfico quando é enfrentado. O objetivo de deixar os familiares melhor amparados e livres de inventários demorados e complicados pode conduzir as pessoas a tomarem medidas que darão mais conforto e menos conflito entre os entes.

“A morte gera efeitos jurídicos e o ideal é que o próprio autor da herança que um dia será transmitida aos seus sucessores faça um planejamento de como o seu patrimônio será transmitido. Isso evitaria muitos conflitos judiciais, além de ônus tributários no momento da sucessão”, indica Gabriela Federico.

Orientações

Existem dois tipos mais comuns de testamento: o público e o particular. O público é aquele registrado em cartório, que tem uma taxa fixa de R$ 600 na Bahia e precisa da assinatura de duas testemunhas que não sejam parentes. O particular é redigido à mão ou eletronicamente e também necessita de assinaturas de testemunhas sem vínculo familiar.

Para quem deseja orientações sobre o tema, é possível procurar gratuitamente a Comissão de Direito da Família da OAB-BA através do e-mail [email protected] ou da conta do Instagram @comissaodefamilia. A lista de cartórios e seus respectivos endereços e contatos fica disponível nos sites do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e do Colégio Notarial do Brasil.