Mergulho na zona abissal

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  • Paulo Sales

Publicado em 19 de julho de 2021 às 07:15

- Atualizado há um ano

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“Os mortos e os amigos (você entre eles) aparecem-me em sonhos. É assim que andam as coisas nos tempos que correm: para encontrar as pessoas a gente precisa dormir”. Essa frase do escritor argentino Ricardo Piglia, no romance Respiração Artificial, parece ecoar os tempos que correm por aqui. O tédio do confinamento em casa, a ausência de encontros com amigos, o receio de frequentar restaurantes, a impossibilidade das viagens com total segurança. Estamos cada vez mais sozinhos.

É do mesmo autor e do mesmo romance outra frase: “Que mais temos, senão princípios, para aguentar no meio de toda essa merda?”. Mantemos os princípios. Devemos, por uma questão de ordem moral, preservá-los. Diria até que como um meio de sobrevivência. É o que nos faz íntegros, sólidos, coesos. Suportamos com estoicismo o caos, a delinquência institucionalizada, a arquitetura da destruição. E sonhamos com tempos mais doces.

Sonho muito, mas muitas vezes esqueço quase tudo ao acordar. No devaneio onírico mais recente, nesta madrugada, um amigo aparecia desesperado aqui em casa porque devia 11 mil dólares a um traficante de drogas. Foi um alívio saber que essa dívida nasceu da minha inconsciência. Também foi bom reencontrá-lo em sonho, já que não o vejo há quase dois anos. Os pesadelos, raros, costumam dar as caras nas noites de frio. Acordo com os dentes trincando e as costas geladas.

Fico me perguntando quem é o grande romancista por trás dessas imagens tão nítidas, dessas reminiscências de momentos que não vivemos? Seríamos, todos nós, andróides de Blade Runner, com memórias forjadas no ato de fabricação? Os sonhos me intrigam, me surpreendem. Eles formam um universo bem vívido no qual imergimos para depois abandonarmos, não sem um certo lamento. A eles nos entregamos sem amarras, como um mergulho em apneia rumo à zona abissal e às fossas de magma, onde a luz inexiste.

Gosto quando lembro nitidamente dos sonhos. Outro dia mesmo sonhei que reabria o Sancho Pança, um antigo boteco espanhol que existia na Pituba. Estava igual ao Sancho dos velhos tempos, com suas mesas de barris de carvalho e o ambiente escuro e aconchegante. Na juventude ia muito lá com amigos e namoradas. Guardo até uma foto ao lado de dois grandes amigos, os três rodeados de taças de sangria, pães e tortillas, os rostos sérios e cabisbaixos, como existencialistas tardios. Ao fundo, um quadro com uma gravura do Cavaleiro Andante de Cervantes.

Por falar em juventude, costuma acontecer de eu surgir ainda novo nesses delírios noturnos. Essa ruptura da ordem do tempo me agrada, como se o passado estivesse logo ali, palpável, e pudéssemos vivenciá-lo em toda sua plenitude. Voltar aos anos mortos como se estivéssemos numa máquina imaginada por H.G. Wells: 2002, 1996, 1988, 1979… Em alguns sonhos meu pai aparece, o que é sempre um alento, apesar de acordar desapontado.

Em um deles era sábado à noite. Meus pais estavam com a gente em casa e só na hora de dormir lembrei que não tinha aberto um vinho para beber com eles. Então pensei que na tarde seguinte eu poderia abrir um rosé da Provence, e que meu pai certamente iria gostar muito dele. Nesse momento o despertador tocou, eu voltei à superfície e me dei conta de que meu pai não estava aqui, nem iria estar, para beber um rosé da Provence comigo.