Meu escritório é na rua: trabalho usando o próprio carro cresce na Bahia, diz IBGE

Dados da Pnad Contínua apontam que 70 mil trabalhadores usam seus veículos

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  • Da Redação

Publicado em 19 de dezembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/ CORREIO
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Após perderem o emprego formal, o casal Irene da Silva e Fábio Ferreira decidiu usar o carro para vender comida ao lado do Sesc Casa do Comércio, na Rua Coronel Almerindo Rehem. Assim como os dois, em 2018, foram 70 mil trabalhadores usando o veículo para trabalhar em Salvador, de acordo com dados da Pnad Contínua: Características Adicionais do Mercado de Trabalho 2018, divulgados nessa quarta-feira (18).

A capital baiana registrou o terceiro maior aumento absoluto na categoria entre as capitais do país, saltando de 46 mil em 2017 para os 70 mil em 2018, um avanço de 52,7% na comparação dos dois anos. Irene e Fábio usam o próprio carro para trabalhar (Foto: Arisson Marinho) Além de vender comida, carros estacionados nas ruas de Salvador também comercializam produtos como roupas e calçados. Mas a grande influência para o aumento no número de trabalhadores em veículos na capital é a adesão da população ao trabalho nos aplicativos de transporte, aponta a supervisora de disseminação de informações do IBGE, Mariana Viveiros.

“Os aplicativos de transporte existem há muito tempo, mas, estatisticamente, há números que demoram de ganhar corpo. O aumento foi nas capitais como um todo”, explicou.

Em geral, o aumento do trabalho informal é relacionado com o desemprego, indica Viveiros. Na Bahia, o trabalho por conta própria, seja nos carros, na rua ou em casa, sempre foi importante, mas foi a partir da crise do mercado de trabalho e a alta do número de pessoas sem emprego em 2015 que os baianos partiram em maior quantidade para a informalidade

“Em 2018, foi quando, nacionalmente, houve uma recuperação dos postos de trabalho, mas não na Bahia. No estado, a melhoria não foi muito grande e a situação permaneceu ruim”, explicou Viveiros. 

A Bahia registrou uma taxa de desocupação de 17,4% no quarto trimestre de 2018, de acordo com o IBGE. Salvador fechou o ano passado com taxa de desocupação de 16,1%.

Foi no começo deste ano que Paula Ferreira Ayade, 38 anos, saiu do trabalho. Na procura de um novo emprego como analista financeira, ela percebeu que o mercado pagava uma remuneração baixa. Daí veio a ideia de montar a Gourmet Supreme. Há um mês, Paula começou a vender cuscuz, aipim, café e sucos ao lado do Sesc Casa do Comércio. Ela cozinha os alimentos em quatro bocas de fogão instaladas no porta-malas do seu carro. Agora, ela calcula ganhar mais que o dobro do que arrecadava quando trabalhava de carteira assinada. Paula Ayade vende alimentos ao lado do Sesc Casa do Comércio (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) “No começo, eu tinha apenas duas bocas de fogão. Tive que ampliar para quatro. Comecei vendendo cinco cuscuz por dia, agora são  80 vendas”, contou Paula, que trabalha das 6h às 12h. 

A quantidade de gente que trabalha na rua, segundo a pesquisa, é seguida por quem trabalha em casa - Salvador é a capital com o terceiro maior percentual de pessoas que trabalham na própria casa (8,2%).

Dona de uma loja de moda plus size, Lorena Cardoso, 32, trabalha onde mora. Nessa quarta (18), no entanto, ela estava com o seu carro estacionado logo após o relógio de São Pedro, na Avenida Sete de Setembro, para onde vai nos meses de junho e dezembro, quando o marido está de férias e pode ajudar na empreitada. Para conseguir montar o mostruário das peças no fundo do carro, Lorena precisa estacionar o veículo na avenida às 4h30. Mais tarde, a vendedora volta para o local para arrumar a venda, por volta das 7h, e começar a comercializar as roupas.

“Aqui eu ganho o triplo do que em casa. Como eu trabalho pela internet, os clientes não podem ver as roupas de perto. Quando expõe, a saída é muito maior porque eles veem a qualidade do produto”, disse. Lorena começou a vender roupas há três anos quando percebeu que as peças plus size disponíveis no mercado não agradavam muitas clientes. Então, ela saiu do emprego no varejo para trabalhar na informalidade.

Desde 2015, o número de postos de trabalho formais na Bahia caiu e apenas 60 mil das 150 mil vagas perdidas devem ser recuperadas até o final de 2019, apontou o coordenador de Pesquisas Sociais na Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), Guillermo Etkin. O coordenador explicou que novas formas de contratação com rendimentos menores reduzem a renda das famílias, o que aumenta o desemprego pela pressão causada no mercado de trabalho. Ou seja, o dinheiro do trabalho tem menor impacto e é preciso que mais pessoas na família ajudem na renda da casa.

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Com mais pessoas à procura de emprego, a demanda pelas escassas vagas aumenta “Não houve a recuperação do estoque de empregos formais ao nível de pré-crise. A Bahia e o Brasil estão muito distantes ainda dos níveis pré-crise falando de emprego formal”, afirmou. Além dos fatores de mais procura por emprego formal e menos dinheiro pago para os já empregados, Etkin aponta que a reforma trabalhista, a redução das vagas de emprego, a diminuição do poder de compra, a mudança na composição da renda e a queda no investimento no setor privado explicam o aumento da informalidade.

No estado, cerca de 6 em cada 10 pessoas que trabalhavam em 2018 eram informais. A taxa é de 56,7% da população ocupada, o que representava 3,3 milhões de trabalhadores – o maior número desde 2013. Em Salvador, no ano passado, eram 4 trabalhadores informais em cada 10 pessoas com trabalho na capital, o que representava 40,3%. Ao todo, eram 587 mil pessoas sem vínculos trabalhistas registrados.

O economista entende que o esforço para empreender, como faz quem monta uma loja em casa, é consequência da redução nos postos de trabalho. “As pessoas não buscam um trabalho mais flexível ou livre, mas, pela precarização do mercado de trabalho, inclusive o formal, se busca outra alternativa”, informou Etkin.

Sobre quem recorre aos aplicativos de transporte para conseguir uma renda, o coordenador acredita que os números demonstram a precarização do mercado de trabalho ao passo que os profissionais não encontram um emprego formal e acabam recorrendo a trabalhos com barreiras de acesso pequenas. “Quando não tem carteira assinada, não está coberto pela seguridade social. A grande maioria está vulnerável, em um acidente de trabalho não tem a cobertura da seguridade social e estão desassistidos”, afirmou.

Autorização municipal Na capital, seis mil pessoas possuem licença para trabalhar na rua, de acordo o com coordenador de Licenciamento e Fiscalização da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), Valmir Gama. Ele explicou que qualquer venda ou prestação de serviço realizado na rua deve ser autorizado pela Semop. Para conseguir a liberação, o trabalhador precisa ir até a sede do órgão, das 8h às 16h30, para abrir um processo administrativo e pedir a autorização, informando o trabalho a ser realizado e quais equipamentos serão usados.

Para trabalhar de forma licenciada nas ruas da capital, é necessário pagar uma taxa de acordo com o serviço desejado. A Semop permite que camelô, carrinhos de comida de tração humana, food bike, banca desmontável e tabuleiro sejam utilizados na cidade. “Podemos analisar a situação de qualquer tipo de equipamento específico que não se enquadre na lista de itens já liberados”, afirmou.

O coordenador ressalta que, em geral, o uso do veículo de transporte é “muito improvisado”. Outra questão levantada por Gama é o risco para os clientes de quem usa o carro para trabalhos, como a venda de roupas e comida. “A gente não vai deixar alguém no meio da pista vendo a roupa atrapalhar na mobilidade urbana e na segurança. Ainda existe a questão de concorrência desleal de quem para o carro em frente a uma loja”, disse.

Se não possuírem uma autorização, os donos das vendas que funcionam em carros ou nas ruas podem ter as mercadorias apreendidas.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier