Mil vezes os vícios explícitos de Maradona do que o bom-mocismo do brasileiro

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 30 de novembro de 2020 às 12:07

- Atualizado há um ano

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De acordo com a autópsia, a criatura morreu de infarto. Ou “parada cardiorrespiratória”, o que é algo bem vago. Enquanto dormia. Aos 60 anos. Uma morte boa, inclusive, ainda que prematura. Naquela noite, ele não tava na balada tomando doce nem largado na cracolândia nem dando uns tecos com amigos ou qualquer coisa parecida. Maradona não morreu de overdose o que – aí, sim, eu entenderia – seria mote inevitável para todo comentário e notícia. Tá. Como sabemos, é comum que a causa mortis esteja ligada ao estilo de vida. Quando o processo dá certo (e não há acidentes, claro), construímos a nossa morte todos os dias. Cada um ao seu modo e gosto. Cada qual com seus limites.

(Qualquer que seja a vida que levamos, vai nos predispor à nossa morte “escolhida”)

Com Maradona não seria diferente. No entanto, não vemos “infelizmente era louco por mocofato” ou “não se exercitava regularmente” nem “a circunferência abdominal havia passado do limite saudável” quando glutões e sedentários batem as botas, por exemplo. Porque a nossa questão, até nessa hora, é moral. Infelizmente. Nesse caso específico, ainda, de forma sutil (ou nem tanto), colocando Pelé como contraponto. Dentro de campo, não discuto porque não sei. Mas, fora dele? Pelé? Pé-lé? Pelé, gente? (Foto: Arquivo AFP) “Ah, então não podia comentar que o cara era dependente químico?”. Oxe, pode tudo. Nem ele tentava esconder, sabemos. E depois, cada um tem sua boca pra dizer o que pensa. A questão aqui é, justamente, o que pensamos coletivamente. Aí, é o seguinte: não teve uma vez que repórter engomadinho falasse (alguns performando respeito, mas vazando ironia) da “vida conturbada” do jogador que eu não fosse pro meme “enfim, a hipocrisia”. Explique “conturbada”, inclusive. Adjetivo suavíssimo se aplicarmos às vidas de muitos dos adorados atletas do futebol contemporâneo brasileiro. Que, diante destes, Garrincha – com toda a cachaça – era fichinha. Dieguito também que, até onde eu sei, nem cachorro que come gente morta - ou mulher esquartejada - tinha.

Eu gostava dele. Até achava bem sexy, apesar de tão baixinho (gosto pessoal, dá licença). Tinha fogo nas ventas. Mas a questão não é essa nem a minha recém-descoberta paixão por argentinos, Argentina, salteñas e afins (tenho meus motivos). Não se trata de “defender” quem nem precisa e quem sou eu na fila, né? É sobre nós e nosso puritanismo, sobre essa doença chamada normose que, cada vez mais, nos atinge. É a tristeza por termos perdido a verve junto com a noção de que há crimes maiores do que cheirar cocaína. Mas tudo bem cometê-los se você parece “limpinho”.

Com tudo que viveu, Maradona era mais saudável e funcional do que muito brasileiro médio que eu conheço. Ele, escancarado, frágil, vivo. Posicionado, pele tatuada com imagens de quem era e do que acreditava.  Este, o brasileiro médio, agora metaforizando a hipocrisia, com perfeição, quando anda por aí com a máscara no queixo. Nenhuma imagem define melhor o ”vou, mas não vou”, “sou, mas importa é que eu não pareça”, “não enfrento, mas despisto”. Porque, além de tudo, nos faltam culhões (e ovários, claro) em nossa era do bom-mocismo, da violência direcionada aos mais frágeis, do ódio doméstico, mas barbas feitas toda segunda-feira e muita oração na igreja. Perdidos estamos nós, companheiros/as. Conturbada é a nossa vida. Eu sigo preferindo mil vezes os vícios explícitos de Maradona do que o bom-mocismo do brasileiro. Principalmente porque este é da minha conta. Deste, eu tenho medo.