Movimento negro trouxe Desmond Tutu à Bahia para falar sobre racismo, em 1987

Nobel da Paz de 1984 se destacou pela luta contra o Apartheid na África do Sul

Publicado em 11 de abril de 2021 às 07:00

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Bispo Tutu foi à Igreja Anglicana, na Pituba, logo que chegou a Salvador, em maio de 1987 (Foto: Silfredo Freitas/Arquivo CORREIO) Uma visita que durou pouco mais de três horas, em maio de 1987, transformou a história do Olodum e de sua luta contra o racismo e contra o Apartheid. E ainda ajudou a incluir no repertório do grupo uma música até hoje executada no encerramento de suas apresentações: Nkosi Sikelel’ iAfrika, o hino popular do Congresso Nacional Africano. O visitante que deixou tantas marcas foi o arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Mpilo Tutu, conhecido mundialmente como Bispo Tutu.

Na ocasião da visita, o bispo tinha 56 anos de idade e, há três anos, havia recebido o Prêmio Nobel da Paz de 1984 por sua luta contra o Apartheid em seu país natal, a África do Sul. A visita em Salvador foi organizada por um coletivo de entidades negras, incluindo o próprio Olodum, o Ilê Aiyê, a Unegro e o MNU (Movimento Negro Unificado)."O Olodum fez parte dessa recepção, com a banda Olodum, com pronunciamento. E, ao mesmo tempo, cantamos uma canção muito interessante de um autor paulista chamado Branca di Neve. A canção se chamava 'Você sabe a cor de Deus?'. Essa visita foi importantíssima porque marcou o aprofundamento do Olodum com a luta contra o Apartheid e contra o racismo no mundo. Nós começamos a cantar o hino do Congresso Nacional Africano para encerrar os eventos em Salvador, começamos a cantar sempre", lembra João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum.

Tutu chegou a Salvador numa terça-feira, dia 19 de maio de 1987, e foi recepcionado no Aeroporto Dois de Julho por autoridades locais. De lá, foi para a sede da Igreja Anglicana na cidade, no bairro da Pituba, e depois para uma manifestação no Pelourinho. A pauta do protesto era o racismo, e o bispo da Igreja Anglicana em Salvador, Clóvis Rodrigues, contou ao CORREIO, na época, que o sul-africano ficou emocionado com a recepção do povo no Pelourinho.

Lá, Tutu discursou sobre o racismo e admitiu o uso da força contra os governos ditatoriais. “Seremos obrigados a empregar métodos malignos para nos defender daqueles que se utilizam de processos malignos”, afirmou, se referindo aos opressores do povo negro em seu país.

Ele também falou sobre liberdade:“Digamos a todos os opressores, a todos os ditadores do mundo, de onde quer que sejam, que pouco importa o que eles digam, porque nós seremos livres”, declarou.E completou, sobre o racismo vivido em seu país e uma suposta sensação de liberdade experimentada pelos brancos. “Os brancos da África do Sul se julgam livres. Mas eles não são. Têm que manter enormes cães de guarda em suas casas. Põem grades nas suas janelas, travas nas suas portas e armas sob os seus travesseiros. Eles receiam toda hora. Tudo isso porque não ouvem o que nós queremos dizer a eles: ‘Enquanto um de nós não for livre, ninguém o será’”. Pauta de evento no Pelourinho foi o racismo (Foto: Silfredo Freitas/Arquivo CORREIO) O palanque armado no Pelourinho tinha políticos, como vereadores e deputados – o bispo recebeu, inclusive, o título de cidadão soteropolitano. Mas foram, sobretudo, integrantes do movimento negro que estiveram no local para ouvir Tutu. O bispo sul-africano até arriscou alguns passos de dança ao ouvir os tambores do Olodum. O grupo Synicate, do Suriname, encerrou a manifestação cantando Apartheid No junto com os tambores do Olodum. Do Pelourinho, o Bispo Tutu foi direto ao aeroporto, onde embarcou com destino a Brasília.“Tutu confidenciou que pretendia pedir a Sarney a adoção de sanções econômicas, políticas e diplomáticas contra o regime de Pretória (África do Sul)”, dizia um trecho de reportagem do CORREIO da época.Desmond Tutu foi, segundo João Jorge, a primeira personalidade da luta contra o Apartheid a estar com o movimento negro, em Salvador. Em 1991, veio Nelson Mandela, dois anos antes de também receber o Prêmio Nobel da Paz.

Retornos Aquela foi a primeira, mas não a única visita do Bispo Tutu a Salvador. Em 2007, veio à cidade durante o Carnaval e fez uma visita ao Camarote 2222, de Gilberto Gil. "O Carnaval da Bahia é maravilhoso! É bonito ver pessoas de raças diferentes unidas pela música e pela dança. Todos viram um só!", disse, durante a festa. Bispo Tutu no Camarote Expresso 2222, ao lado de Gilberto Gil, no Carnaval de 2007 Foto: Luiz Fernando/Divulgação Anos depois, em 2015, o sul-africano escreveu uma carta a Gil e a Caetano Veloso tentando impeli-los a desistir de realizar o show da turnê Dois Amigos, um Século de Música, em Tel Aviv, Israel. Tutu disse que o povo palestino também vivia naquele momento um apartheid.“Você, Gil, até cantou para nós: “Tornai vermelho todo sangue azul”. Você cantou ao “Senhor da selva africana”, dizendo que ela era “irmã da selva americana”. Eu acrescento: nossas selvas também são irmãs do vale do rio Jordão ocupado, das oliveiras em Jerusalém e dos pomares cítricos da Terra Santa”, dizia a carta.Gil respondeu que os argumentos do bispo eram “fortes e verdadeiros até certo ponto”, mas afirmou que não considerava Israel uma sociedade de apartheid e que tinha empatia pelo povo. Caetano Veloso respondeu à carta: “Quando a África do Sul estava sob o regime de apartheid, e eu soube que artistas estavam se recusando a tocar lá, concordei como que automaticamente com tal decisão. A complicada situação no Oriente Médio não me mostra o mesmo tipo de imagem preto-no-branco que o racismo oficial, aberto, da África do Sul me mostrava então”.

Hoje, aos 89 anos de idade e 33 anos após aquela visita, o Bispo Tutu estimulando as pessoas a pensar, mesmo que indiretamente.  Na semana passada, uma frase dita por ele há mais de 40 anos reverberou dentro do Big Brother Brasil: “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. O apresentador Tiago Leifert usou a declaração para cobrar que uma das participantes do reality se posicionasse sobre uma desavença na casa, pedindo que ela não ficasse ‘em cima do muro’ e apontasse, afinal, quem ela achava que estava certo ou errado na situação.