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Da Redação
Publicado em 6 de outubro de 2019 às 06:03
- Atualizado há 2 anos
“Sim, e Carla Perez?”, contesta o sujeitinho enjoado diante da sentença-título: nunca antes na história do pagodão uma mulher figurou como protagonista. Concordo, queridão, Carlinha teve mesmo seu reinado (trono jamais questionado), mas voz de comando-comando na cena só quem teve foi o maridão.>
À frente do Harmonia, no início dos anos 2000, Xanddy forjou o arquétipo do band leader naquilo que se convencionou chamar de pagode baiano -- ritmo com raízes no samba de roda e primeiros frutos do vosso ventre colhidos dez anos antes, no Gera Samba de sua senhora. Se você aceitar o desafio de puxar na memória um só nome feminino que virou referência como cantora do gênero, falhará miseravelmente. Meus sentimentos. Allana, Rai e Daiana estão com o microfone (Fotos: Divulgação) Mas volta pra mim que eu tenho uma novidade ainda que tardia pra contar: reboladas quase três décadas, chegou enfim o tempo em que a mulherada, com som no microfone e tudo no seu nome, conquista a chance de brilhar no front. Encontrei na casa de sete mulheres (talvez haja 10 ou 15) que cantam e, tão importante como, compõem sob seus pontos de vista.>
E os perfis, pra oxigenar e melhorar o movimento, são os mais diversos. De Rai Ferreira, antes A Madame e agora A Rainha, que tem vídeos com milhões de views e vem fazendo shows mesmo durante a gravidez, a Daiana Leone, a Mãe do Pagode, que, ironicamente, ainda não teve filho. De Allana Sarah, A Dama do Pagode, que é um dos maiores fenômenos dos paredões, a Larissa Marques, mulher de jogador famoso que busca seu lugar ao sol com o som que faz em Feira.>
No embalo do bolão que elas vão batendo, driblando assédios e dando carrinho por trás nos preconceitos, já viraram até tema de estudo na academia.>
Estudadas Concluintes de Jornalismo na Unijorge, Beatriz Almeida, Giovana Marques, Joyce Melo e Tainá Góes estão desenvolvendo um TCC sobre a representatividade feminina no pagodão. No artigo científico 'Transformações Provocadas pela Presença de Mulheres Vocalistas na Cena do Pagode Baiano', apresentado mês passado no Intercom de Belém do Pará, elas já adiantam o que vem por aí.>
“O projeto Pagode Por Elas nasce como parte do nosso TCC. Fizemos o artigo científico e agora estamos fazendo uma reportagem especial multimídia”, explica Joyce Melo, 20 anos, que junto com as colegas já têm divulgado parte do conteúdo no Insta do projeto.>
E o trabalho chega pra ocupar um vácuo científico.“Não encontramos nada sobre o lugar da mulher fora do papel de piriguete, apenas estudos sobre a sexualização desse corpo. Por isso, definimos o recorte do nosso artigo para o lugar da mulher enquanto vocalista, na tomada desse lugar de ‘protagonismo’”, explicou.Além das quatro personagens já citadas, o Pagode Por Elas também terá perfis das cantoras Fernanda Maia (da Afrocidade), Jade Girl (ex-Clube da Luluzinha) e Léo Kret, mulher trans lembrada como um dos primeiros exemplos de cantora bem-sucedida no gênero.>
Perguntei à ex-vereadora o que ela achava da saudação pelo pioneirismo. “Me sinto feliz e honrada das pessoas lembrarem desse meu ato de coragem e empoderamento feminino, pois na época era muito difícil as mulheres expressarem sua vontade de subir em um palco e cantar pagode pra um público na sua maioria machista, e eu encorajei e fui inspiração pra muitas pagodeiras”, agradeceu.>
Mas antes dessas danadas, qual era o papel da mulher nessa levada louca?>
Reflexo da sociedade Para Joyce Melo, o pagode baiano sempre reproduziu o que é a sociedade: patriarcal, machista e sexista, o que “impossibilitou o acesso e avanço das mulheres nesse meio”.>
Já vejo outros sujeitinhos enjoados chamando isso de mimimi e coisas do tipo, mas já me antecipo pra trazer um exemplo prático e colocar em pratos limpos. Com vocês, ‘Me dá patinha’, hit misógino da banda Black Style no Verão de 2010.>
Diante disso, e dos papéis de Carlas e Sheillas, ou Dianas varredeiras, Julianas arregonas, pergunto: dá pra dizer que, além de coadjuvante, a mulher sempre foi alvo de exploração no pagodão?>
“Não diria explorada, mas historicamente a mulher teve um papel único de ser ‘a piriguete’, entretenimento para os homens e objeto de desejo sexual”, observa Joyce, ao se ater à perspectiva histórica, antes de mencionar a repercussão no cenário hodierno.>
“As mulheres que vão para os paredões são mulheres livres e geralmente bem resolvidas com seu corpo, seu lugar no mundo, mas que estão reduzidas ao papel de dançarinas e backing”, ilustra.>
Só que agora, com cantoras e produtoras conquistando espaços, a história começa a mudar, mesmo ante os entraves de sempre.“Segundo elas (cantoras), o mais importante já foi feito, que é meter as caras. Agora, resta que empresários e grandes produtoras invistam e acreditem no potencial delas”, conclui a futura jornalista.Majestade A futura mainha Rai Ferreira, conhecida como A Rainha (ex-A Madame), é um dos nomes de maior destaque do pagode feminino. Filha de cantores e irmã de Buja Ferreira, vocalista da Timbalada, a moça nascida e crescida no Beiru/Tancredo Neves já trabalhou com artistas consagrados.>
Na longa lista, destaques para Edcity e Tony Salles, além de Robyssão, o autor de ‘Me dá patinha’ que tem um discurso mais saneado hoje em dia e, ironia do destino, foi um dos primeiros a incentivar a participação da mulherada no negócio. Rai Ferreira, 27, faz pausa em novembro para ter bebê e promete vir com tudo no Carnaval (Foto: Joyce Melo) Foi no Bailão do Robyssão, inclusive, que Rai se lançou como cantora, primeiro como backing. Em 2014, uma virada simbólica: executou uma música inteira num show, na canção 'Recalcada', quando Robyssão fez só participação. E na banda Os Africanos, ainda mais atenção.>
“Uma mulher cantando pagode, as pessoas queriam saber quem era. Aí, depois de um acordo com os Africanos, virei A Madame dos Africanos”. E depois só A Madame, e agora A Rainha do Pagofunk, com vídeos que passam de 2 milhões de cliques no YouTube, como 'Movimento do Lento'. Assista.>
“No início foi difícil, porque as pessoas duvidavam. ‘Mulher não consegue cantar pagode, e tal’. E os contratantes achavam que eu não teria capacidade de fazer um show completo, de duas horas. Nos Africanos eu cantava cinco músicas e voltava pros backings”, conta Rai, que lembra até de casos de boicote dos marmanjos.“Quando ia pra algumas participações, meio que ‘mafiavam’ no som, ou não tocavam corretamente quando a gente entrava. Além dos contratantes, tem alguns cantores que não gostam até hoje”, aponta.Lembra também que até a mulherada torcia o nariz. “O público também não aceitava a gente cantar, e por incrível que pareça, é mais difícil chegar nas meninas, porque elas sempre gostaram de ouvir que o cara que comanda. A gente foi mudando isso”, afirma A Rainha, que quase sempre compõe pra demonstrar essa revolução.>
“O cara fala que ele pode pegar várias mulheres, e eu digo que também posso. Na música, eu digo que cada dia da semana eu fico com um cara diferente. (...) No caso, muitas músicas dos homens falam 'porque eu faço e aconteço', 'eu sou barril', 'você faz o que eu quero', e nas minhas eu dizia 'não, pô, isso acontece aqui, na hora da relação, porque eu quero, permito. Então, quer dizer que o comando é meu também. É uma resposta, a minha visão”. Pra quê discutir com madame, digo, rainha?>
A primeira Dama Muda de majestade pra Dama, mas não muda a finesse e o close. Allana Sarah, A Dama do Pagode, também pinta como uma das candidatas mais fortes a primeira crooner estelar do pagodão.>
Com seu black, vozeirão e atitude rock and roll, chama a atenção e é um dos grandes fenômenos dos paredões de Salvador. Pra ela, tudo que tem vivido parece um sonho, embora também tenha como um dos pseudônimos ‘O Pesadelo dos Homens’.>
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Quem dormiu não viu quando ela, rapidinho, passou de dançarina da laje no Universo Axé, pra backing da banda O Pega e, após shows em barzinhos do Cosme de Farias e Nordeste de Amaralina, sua conversão na Dama primeira.>
A alcunha surgiu numa resposta à canção que anunciava que “chefe é chefe”. Replicou com “Dama é dama”, e o título pegou. ‘Ai pai, pirraça’ é a primeira música dela que pegou geral, com Márcio Victor na esteira dos que cantam. A participação dela no show de O Poeta, no Salvador Fest, há duas semanas, dão uma dimensão da coisa. Assista.>
Apesar disso, volta e meia também pega alguma chiada sobre o teor de suas composições. “‘Porra, véi, ó as músicas que essa bicha canta’. Mas não é nada disso. Eu canto o que a favela gosta, independente de palavra”, justifica-se, mas sustentando a posição.“Eu procuro não cantar músicas escrotas, falar mal da mulher. E quando eu ponho a mulher nas letras, eu coloco uma falando mal da outra, nunca um homem, sabe?”Sei. E é importante saber também que A Dama tem uma dama. “Eu sou mulher, canto músicas de mulher, mas sou lésbica. O assédio (masculino) acontece, mas comigo ele não é tanto assim. Respeitam bastante. A gente sofre mais assédio de mulher do que de homem. As mulheres tão dominando até nisso”, brinca a comprometida compositora de ‘Talarica’, outro hit dos paredões.>
Alô, empresários Mas, afinal, o que falta pra um grande nome feminino despontar nos vocais e ganhar projeção nacional? Embora a pouca experiência, Daiana Leone, 21, conhecida como A Mãe do Pagode e cantora da banda Swing de Mãe, tem a resposta na ponta do microfone: falta a devida atenção dos empresários e da imprensa. Daiana Leone, a Mãe do Pagode, vocalista da banda Swing de Mãe (Foto: Divulgação) “Até hoje, os empresários não acreditam na visão de mulher cantando pagode. O mercado ainda não acredita que a gente pode dominar esse meio, sendo linha de frente, dona das vozes, falando de nós mesmas”, milita a jovem do Alto das Pombas que canta para “exaltar a imagem da mulher empoderada que ‘mete dança’ sem medo de julgamentos, que bebe, sai com as amigas, independente, grandona e sem medo de nada”.>
Um exemplo prático e destemido disso está em 'Chama as Amiguinhas', single que ganhou clipe no início deste ano.>
“Daqui pra frente as pessoas vão acreditar mais que as mulheres podem entrar e ser referência nacional do pagode baiano”. De acordo, Mãe. Tá só começando.>