Nada nos bolsos ou nas mãos

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  • Kátia Borges

Publicado em 7 de fevereiro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Outro dia fiz um post sobre o mais querido dos meus amigos de verdade. Era o dia do aniversário de morte dele, que aconteceu (não sei se podemos dizer que morrer simplesmente acontece) em janeiro de 2014. E então me veio a memória eletrônica no Facebook, uma fotografia de sua última viagem a Londres.

Na imagem, esse meu amigo de verdade parece estar saindo de uma cabine vermelha de telefone, dessas tão clássicas que existem até em miniaturas vendidas em lojas de souvenir. Fiquei surpresa ao ver como parecia bem mais velho que a idade — confesso que ainda não havia me dado conta de que estávamos envelhecendo.

Só senti o peso em dezembro de 2015, quando perdi minha mãe. Foi como se a partida dela me autorizasse a envelhecer. Será que a gente deixa de ser filha se a mãe da gente morre? Penso que não, logicamente, mas ali a gente nasce outra vez, ali a gente nasce num outro parto, com fórceps. Algo nos arranca de um dentro quente.

“A vida apenas, sem mistificação”, como escreve Carlos Drummond de Andrade. E eu lembro o dia exato em que notei, em que me dei conta de estar sem pai nem mãe no mundo, num misto de tristeza e liberdade. Porque ser livre nem sempre é estar alegre, ou não se entende nenhum dos termos. Muitos o fazem.

Eu havia perdido a matrícula no semestre e, no pátio do Instituto de Letras, esperava por Thiago, o anjo que me salvava sempre na burocracia do doutorado. Era de tardezinha, um de dia qualquer de 2016, poucos estudantes circulavam pelos jardins do campus. Havia um rádio de pilha ligado no baleiro tocando Alegria Alegria.

“Nada nos bolsos ou nas mãos”, olhei em torno e senti que o mundo já não era o mesmo, embora tudo parecesse estar no lugar certo. Se havia algo a ser ainda descoberto, caberia a mim a paciência de aprender de novo, com tudo que isso implica de revelação e de mistério. Mas o que é mesmo um amigo de verdade?

Hoje devo ter uns três mil amigos virtuais. Se contar todas as redes, talvez um pouco mais. Converso longamente com apenas um deles, que vive a dois aviões de onde eu moro. Pessoalmente, nos vimos três únicas vezes. O que é amizade de verdade? Também não sei. Mas espero que, um dia, o Tempo revele.