‘Não é coisa de vagabundo’, defende arcebispo católico que jogou capoeira no Pelourinho

Dom Zanoni é negro e bispo referente da Pastoral Afro-Brasileira, além de comandar a igreja católica em Feira de Santana

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 9 de fevereiro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Um arcebispo católico jogando capoeira no centro do Terreiro de Jesus, no Pelourinho, é algo que, com certeza, você só vê na Bahia. Não só pela localização do feito, mas pelo simbolismo que ele representa. “É perceber o valor da cultura negra. Veja que não é coisa de vagabundo, mas uma expressão forte de resistência e da luta do negro”, disse Dom Zanoni Demettino Castro, 59 anos, arcebispo de Feira de Santana, o protagonista da cena, ocorrida no sábado (6).  

Ele estava na capital baiana participando da missa de apresentação dos dois novos bispos auxiliares da Arquidiocese de Salvador, Dom Dorival Souza Barreto Júnior e Dom Valter Magno de Carvalho. A missa foi presidida pelo Cardeal Dom Sergio da Rocha e teve a participação de outras autoridades da igreja, como Dom Estevam, bispo da diocese de Ruy Barbosa. Foi ele que gravou o momento que mostra Dom Zanoni na roda de capoeira.  “A gente estava saindo da missa quando passamos pela praça e o pessoal nos pediu uma benção. Além de Arcebispo de Feira, eu sou bispo referencial da Pastoral Afro-Brasileira. Então, já tenho esse diálogo com o resgate da tradição africana. O momento foi uma brincadeira inesperada, uma iniciativa pequena que traz a discussão do modo como nos relacionamos num mundo cada vez mais intolerante, que quer impor uma visão única”, explica Zanoni, que no final ainda deu R$ 100 para os capoeiristas, segundo os mesmos.  É que o grupo Capoeira Terreiro de Jesus vive do turismo. Eles convidam as pessoas que vão visitar o Pelourinho a jogarem capoeira, ensinam o gingado, vendem lembranças e tiram fotos com os visitantes. “Nós sobrevivemos disso. Às vezes não dá para tirar nem o dinheiro da passagem, mas outras vezes temos mais sorte”, confessou um dos líderes do grupo, o Contramestre Passopreto, 36 anos. Ele não estava no momento que o arcebispo católico passou pelo grupo, mas soube do ocorrido. “A cena mostra o quanto somos importantes para o turismo baiano. Precisamos de mais apoio para que isso não morra”, defendeu.   Grupo Capoeira Terreiro de Jesus vive do turismo (Foto: Arisson Marinnho/CORREIO)  Vídeo  O CORREIO conversou com Passopreto no local exato onde a cena foi gravada. Lá também estava os dois capoeiristas que aparecem no vídeo revezando no jogo contra Dom Zanoni, que usava uma roupa social preta, máscara branca e uma cruz cinza. Ele primeiro encarou Robenilson Sousa dos Anjos, o contramestre Garrincha, 36 anos, que não se intimidou com a autoridade eclesial e fez uma bananeira. Esse é o movimento pelo qual o capoeirista se movimenta de cabeça para baixo, equilibrando-se sobre as mãos.  

“Não tenho dificuldade em fazer isso. É o meu preparo atlético. Todo final de semana venho correndo do Pau Miúdo até aqui”, diz o rapaz, que também trabalha numa loja de móveis no Centro Histórico. “Nos momentos de intervalo, sempre dou um jeito de passar aqui para vadiar”, confessa. Garrincha está na capoeira desde os cinco anos e é filho do Mestre King Kong. Ele também é candomblecista e faz parte do terreiro Nzó Kâwani Meso Ma Wânzi Junsara, localizado no bairro onde mora. “Eu nunca pensei em estar com um bispo, repercutindo tanto. É a lição para os mais jovens praticarem a capoeira e não desistirem dos seus sonhos”, declara.   Mestre Garrincha aproveitou o intervalo de almoço para encontrar os amigos no Pelourinho (Foto: Arisson Marinnho/CORREIO)  Ainda no vídeo de 54 segundos, Zanoni recebe o convite de outro rapaz para participar da capoeira. É o gaúcho Edson Coelho, 50 anos, o Mestre Dhunga, que está em Salvador para participar de eventos da Capoeira. “Eu já fui católico e percebi que ele era uma pessoa importante na Igreja pelas vestes que usava, mas não imaginava que fosse um arcebispo. O vídeo já foi parar lá no Rio Grande do Sul. Tá todo mundo comentando”, afirma.  

Dhunga tem uma academia de capoeira no estado gaúcho. Ele não tem dúvidas de que a atitude do arcebispo rompeu paradigmas. “Isso tinha que acontecer aqui na Bahia, onde eu vejo que o respeito à capoeira é mais forte. Lá fora ainda tem muito preconceito. Mas a capoeira é um espaço democrático, assim como é a igreja. Independente de raça, opção sexual e credo, você é acolhido numa roda de capoeira”, conta.   O gaúcho Mestre Dhunga também jogou capoeira com o arcebispo baiano (Foto: Arisson Marinnho/CORREIO)  Repercussão  No vídeo publicado no Instagram, que tem milhares de curtidas e 399 comentários, diversos católicos elogiaram a atitude do arcebispo. “Que orgulho!”, escreveu o padre Fabio de Melo. “O nosso bispo é do paranauê”, brincou o Frei Mario Sergio, da Paróquia do Santo Antonio, de Feira de Santana. O próprio Zanoni comentou na sua publicação sobre a importância histórica da sua atitude.  “A capoeira até 1937 era considerada um crime. Minha reverência ao Mestre Bimba, que com o seu protagonismo, desde 1932, levando a capoeira às academias, lutava contra esta odiosa expressão de racismo. Nesta oportunidade, faço memória ao Mestre Moa do Katendê, assassinado barbaramente em 2018 em Salvador. “Senhor, venho te ofertar coisa de negro”. Precisamos refletir sobre o assunto", escreveu.  Zanoni nasceu em Vitória da Conquista, sudoeste baiano, em 1962. Ele foi padre durante 22 anos, até 2007, quando se tornou bispo da Diocese de São Mateus, no Espírito Santo. Em 2014, foi nomeado como o Arcebispo de Feira de Santana, onde está até hoje. Ele tem orgulho de dizer que é negro, mas lamenta não ter passado por uma academia de capoeira antes. Ali foi apenas a primeira vez que ele entrou na roda. “É a baianidade da gente que faz com que todos tenhamos o gingado para a capoeira”, disse.  

O arcebispo ainda explicou ao CORREIO que a sua luta contra o racismo e a favor do povo negro não é de agora. “Eu fui criado numa região que não tinha muito presente a questão do afrodescendente, mas aos poucos eu fui tomando consciência da minha negritude com orgulho. Sempre fiz trabalhos nesse sentido como padre. Somos 40 bispos católicos brasileiros os que assumem com orgulho essa descendência africana”, declara.   

Histórico  Para Edielson da Silva Miranda, o Mestre Roxinho, fundador do Instituto Cultural Bantu, que trabalha a capoeira como atividade socioeducativa e psicossocial com jovens, a cena foi extremamente positiva. “O arcebispo contribuiu com um chamado e um pedido. Isso reverbera uma série de discursos e traz um olhar que a gente precisa. A própria imagem da igreja precisa, mas a capoeira também”, explica.  

Mestre Roxinho lembra que o local onde a cena aconteceu, no Pelourinho, embora hoje seja marcado pelo turismo, é historicamente um espaço de dor, onde muitas pessoas escravizadas foram torturadas. A própria capoeira, segundo o mestre, já foi demonizada pela Igreja Católica, e criminalizada por questões raciais.  “Quem criou as leis foram os brancos, que acreditavam que tudo que era feito pelos povos escravizados era coisa de vadio. A igreja católica batiza esse código penal. Ela participa desse processo desde a saída dos povos africanos do seu continente. Eu acredito que nós estamos num processo de compreensão e busca de igualdade das raças. A Igreja é parte fundamental para quebrar o processo histórico de racismo e de diminuição dos valores do que é de matriz africana. Já passou do tempo da igreja assumir esse papel”, afirma.  Sobre o fato de uma figura pública católica participar de uma roda de capoeira, Mestre Roxinho explica que não há nenhum problema. “Pessoas já deixaram de jogar capoeira, pois adentraram a determinadas religiões. Mas quem não é do candomblé pode e deve jogar capoeira. A capoeira não vem só do candomblé, mas tem outros elementos e influências. Eu mesmo tenho alunos mulçumanos que jogam capoeira. A capoeira não é uma religião. Você pode chegar com a sua fé e vai ser acolhido junto com a sua religião para que você respeite a religião das outras pessoas”, conclui.  

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.